É curioso pensar que a maior parte dos meus ídolos na música tradicional Irlandesa são fiddlers, mesmo eu sendo flautista. Sempre me inspiro e aprendo novas tunes escutando gravações de Liz Carroll, Kevin Burke, Mairéad Ní Mhaonaigh, Frankie Gavin e principalmente Martin Hayes. Tem algo nestes fiddlers que me fascinam e que, mesmo que eu também tenha várias outras referências flautísticas, não andam sendo tão constantes na minha vida quanto estes nomes que citei acima. Por isso e outros motivos, assim que vi a notícia de que Martin Hayes estava lançando um livro sobre sua experiência na trajetória musical, já fui correndo para a livraria garantir o meu. E que livro!
Eu não fazia ideia do que esperar de Shared Notes. Não sabia se seria algo mais técnico e extremamente direto no ponto de vista musical ou se abordaria outras coisas. O livro é praticamente uma autobiografia de Martin, pois como ele mesmo diz no começo do livro, em uma conversa com sua atual esposa no começo de sua relação, em uma conversa sobre casamento ela disse "mas eu nem te conheço direito!" - e ele disse "você gosta da minha música? Bem, isso é tudo o que eu sou!"
Mas para quem chegou no mundo da música irlandesa agora e não sabe de quem estou falando, darei uma pequena introdução -
Nascido em County Clare, o fiddler Martin Hayes é uma das maiores referências e um dos músicos mais renomados da música tradicional irlandesa atual. Seus trabalhos mais recentes são The Gloaming, Martin Hayes Quartet, Martin Hayes with Brooklyn Rider e seu mais novo e ainda praticamente inédito Martin Hayes + The Common Ground Ensemble. Na minha opinião, escutar sua música é sentir profundamente o que a música irlandesa significa e carrega por gerações e gerações. E você não precisa ser um entendedor do estilo ou de música no geral…é só parar para escutar com calma, e está tudo ali. Não é só sobre a técnica ou o repertório que Martin escolhe, mas no jeito que ele está contando a tune, de uma maneira atemporal. Mesmo com The Gloaming, que conta com vários músicos de backgrounds diferentes ou apenas o duo com Dennis Cahill, suas melodias têm sempre a mesma intensidade e expressão.
Martin vem de uma família católica e mega tradicional, e sempre teve a música ao seu redor. Seu pai PJ Hayes também era um fiddler bem conhecido na região por tocar com a famosa Tulla Céilí Band, banda na qual Martin também fez parte quando era bem jovem. Ou seja, sempre presenciou a “verdadeira” música tradicional muito de perto.
Como vários outros artistas que vêm de famílias de músicos, temos a tendência de achar que a vida dessa pessoa sempre foi um pouco mais fácil por ter “berço de ouro” e padrinhos que ajudam na trajetória artística. Não que eu pensasse isso muito claramente sobre Martin Hayes, mas todas as vezes em que eu tive a oportunidade de vê-lo tocar, a impressão que me passava era de sucesso total por ver aquela postura majestosa e aquela confiança inigualável no palco. Mas lendo o livro descobri que não foi sempre assim e que mesmo os nossos “heróis” passam por muitas coisas parecidas com as quais passamos. Mesmo tendo nascido na meca da música tradicional, Martin teve que passar por muita coisa para chegar no seu som atual, até mesmo mudar de país por bons 26 anos.
Passando pela realidade das décadas de 70 e 80, onde viver de música tradicional irlandesa era algo praticamente inimaginável (nem mesmo para quem vivia ali), Martin passou por diversos empregos não relacionados a música - montou até seu próprio negócio de vender marmita! Acredita? Largou a faculdade em Limerick e migrou para os EUA esperando uma vida melhor do que a que tinha morando em uma fazenda no interior da Irlanda. Chegando lá, depois de trabalhar como servente de pedreiro e runner da bolsa de valores, até conseguiu trabalho como músico fazendo gigs aqui e ali, mas nunca se deu por satisfeito com o seu som. Não por tocar mal - mas por não achar a sua voz verdadeira. Passou por diversos tipos de bandas e gigs que não eram necessariamente as do seu sonho, tendo que tocar qualquer coisa “rápida” para satisfazer o público embriagado e donos de pubs e viver em apertos financeiros para pagar seu aluguel com mais tantas outras pessoas. Chegou até a quebrar seu fiddle na cabeça do colega de banda por não aguentar mais o fato de “tocar por tocar”. No fundo ele sempre soube que tinha mais para mostrar ao mundo e que havia algo dentro dele que ainda não tinha descoberto. Passando por várias histórias muito interessantes, algumas engraçadas e outras meio trágicas, ele também conta como conheceu seu maior parceiro de palco Dennis Cahill. O duo ainda trabalha junto até hoje e se complementa inigualavelmente em seus diferentes estilos.
Além de contar toda sua trajetória e todas as suas colaborações musicais, Shared Notes também aborda o seu lado político e espiritual, nos quais foram muito importantes no processo todo da sua musicalidade. É interessante ver como as coisas foram mudando e amadurecendo conforme os anos foram passando até ele virar o grande Martin Hayes de hoje. Ler este livro me aproximou mais desse músico que admiro e me espelho tanto, talvez por passar por experiências parecidas e ver que mesmo os músicos que nos inspiram também se frustram e também têm seus momentos de glória. Além de abrir meus ouvidos para um outro ponto de vista da música tradicional irlandesa.
Infelizmente acredito que ainda não há uma versão traduzida do livro para português e que para os amigos brasileiros seja ainda mais difícil encontrá-lo. Porém recomendo muitíssimo para todos que tiverem a oportunidade, tanto músicos quanto não-músicos.
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