Muita gente que se aventura pelo universo do trad conta histórias fantásticas sobre algum encontro inspirador com algum músico famoso. Às vezes é um pouco difícil, para alguns, imaginar como é o espírito que permeia o gênero da música irlandesa. Em tantas dimensões e manifestações diferentes, é um espírito de proximidade, descontração e informalidade que pode soar um pouco distante e até romântico para alguns. As sessions são sempre um certo choque para quem não conhece, por exemplo: aquele monte de músicos tocando juntos uma música maravilhosamente coordenada, todos sentados em volta da mesa ao lado, no mesmo bar que você, tomando a mesma cerveja que você, fazendo pausas para ir ao banheiro que nem você – e, se tratados com o respeito que todo ser humano gosta (mas sem grandes cerimônias), receptivos e abertos para que você se sente junto e toque algumas tunes. É raro você encontrar músicos muito esnobes no trad, e mais raro ainda ver eles andando por aí penteando topetes de celebridade. Não muito tempo atrás, mesmo, trombamos o Michael McGoldrick, um dos mais geniais gaiteiros e flautistas da irlanda, num pub que frequentamos semanalmente aqui na cidade de Galway, tomando um pint e trocando idéia com seus comparsas antes de juntar-se à session. De calça jeans, bonezinho e jaqueta de moletom, totalmente à paisana.
Parece que esse tipo de atitude gera uma certa aura de “gente como a gente” neles – não só na vestimenta, mas na fisionomia, semblante e aspecto dos personagens. Se víssemos um McGoldrick andando de bicicleta pelas ruas, jamais o reconheceríamos como tal. Seria o oposto de encontrar um Marilyn Manson, um Bon Jovi ou mesmo um Ed Sheeran na rua – sujeitos que produzidos e maquiados ou não, exalam um tipo de barreira invisível entre nós, meros mortais. Não consigo me imaginar dando um abraço no Marilyn Manson.
Recentemente tive a oportunidade única de presenciar o show do artista que mais tenho seguido e admirado ultimamente, o flautista Brian Finnegan (que, ao lado da sua carreira solo, também toca na celebrada banda Flook). Veja bem você que, após receber reconhecimentos e prêmios internacionais, ele veio fazer uma turnê pela Irlanda tocando seu álbum mais recente, Hunger Of The Skin. Apesar da grana apertada nesse começo de vida num país novo, juntei meus troquinhos e fui assisti-lo em Lisdoonvarna, uma pequeníssima cidade mais ou menos perto de Galway. Chegamos bem cedo ao hotel em cujo auditório ele faria sua apresentação, receosos de não pegarmos um bom lugar – mas, pelo contrário, sentamo-nos na primeira fila, que só foi encher quase na hora do show. A proximidade do palco era notável, e sugeria um clima meio intimista que beirava aquele dia de apresentações de trabalhos de faculdade. Mais fantástico ainda foi que o hotel dispôs duas ou três mesinhas de bar por fileira, para que o público pudesse apoiar seus pints, que poderiam ser comprados e consumidos tranquilamente durante os shows – era, na verdade, uma seqüência de três shows, que seria encerrada por Finnegan. Este, que antes do início das atrações andava tomando uma sopa no pub do hotel e cumprimentando amigos que chegavam para prestigiá-lo, logo correu para esconder na coxia dos músicos quando as luzes apagaram-se. Mas ele não conseguia conter-se lá, e logo começou a botar a cabeça para fora para espiar e curtir a música junto. Lá pelo segundo ato, ele já se punha todo para fora, ao lado do palco, embalado como nós pela incrível efusividade de Clare Sands.
Finalmente, então, subiu ao palco ao lado da Hunger Of The Skin Band, um grupo de outros 4 músicos que o acompanhariam nas composições que criou para seu último álbum – acrescidas de algumas surpresas aqui e ali. Chamou muito a atenção que, não bastando uma portentosa bateria, instrumento extremamente de se fazer soar bem ao lado da música irlandesa, tínhamos também a ilustríssima presença de mestre John Joe Kelly no bodhrán, que também é parceiro de Finnegan no Flook. O Bodhrán, como bem sabemos, costuma ser bastante exclusivo em termos de percussão no trad – raramente vemos dois bodhráns tocando juntos porque os ritmos, muito pessoais de cada artista, são difíceis de coordenar. Que dirá, então, um bodhrán ao lado duma bateria. E mais: ao lado de um baixo também! Enfim, sei de alguns hosts de session aqui que torceriam o nariz para tamanha blasfêmia, mas a verdade é que o resultado era magnificamente harmonioso e empolgante. Muito difícil a gente se segurar na cadeira e não sair dançando com a gloriosa potência daquele som maravilhoso que erguia-se do palco. Finnegan, com a mesma camiseta estampada e calça jeans que o acompanhavam enquanto comia sua sopa, agora fazia um som virtuosamente leve e empolgante brotar das suas whistles. No palco, ele é o oposto de um Ian Anderson ou de um Mick Jagger, altamente performáticos e teatrais – o que não significa, de forma alguma, que ele não se deixava levar e expressar fisicamente enquanto produzia sua arte. Não estou aqui criando um comparativo de superioridade ou inferioridade dos diferentes estilos – aliás, escolhi em Anderson e Jagger dois dos exemplos que mais admiro na competência de performers. Mas Finnegan tem, como bom músico do trad, um outro tipo de espontaneidade, leve e singela, apesar de orgulhosa e imponente. Combina com o instrumento que toca, a tin whistle: um dos instrumentos mais simples, democráticos e acolhedores que conheço. Toda criança na Irlanda aprende um pouco de whistle na escola – mas pouquíssimas especializam-se a ponto de produzir poesia de tal sensibilidade como este que flauteava há poucos metros de mim. Há que se mencionar, ainda, a forma interessante como Finnegan “toca” microfone. Desde que comecei a fazer shows em São Paulo, ficou muito claro para mim que microfone é um instrumento musical que temos que aprender a tocar também, porque fazer música através de um é bem diferente de tocar em casa ou numa session. Vocalistas, por exemplo, costumam aprender a afastar-se do microfone quando vão elevar um pouco o volume da voz. No caso, o flautista em questão desenvolveu um jeito bem próprio de movimentar-se ao redor do microfone, acrescentando ainda mais uma camada de complexidade no seu tocar leve e detalhista.
Entre um número e outro, ele, tomado de empolgação, compartilhava com a platéia um pouco da história de cada uma de suas composições. “Eva”, por exemplo, que integra os seus belíssimos albuns "The Ravishing Genius Of Bones" e "Sleeper" (KAN), foi composta por ele para sua esposa mexicana. “Crossing Rubicon”, do novo álbum, foi feita pensando em um de seus filhos, que recentemente se formava na escola e cruzava o limiar para uma nova fase da vida – fazendo-se, então, a comparação metafórica com a famosa história de Júlio César. “Chasing The Shouting Wind”, segundo ele, foi uma forma de capturar a sensação de voar – algo que nunca mais consegui deixar de pensar, toda vez que ouço esta faixa novamente. E “Tony” foi uma composição em homenagem ao vizinho de Finnegan, um senhor que costumava receber grandes festas de céile em sua casa e de repente viu-se sozinho como nunca antes durante a Pandemia. Esta última explorei até um pouco mais a fundo no artigo que escrevi sobre o álbum.
Desde que escrevi aquele artigo, e tive a oportunidade de destrinchar e pesquisar esta obra de arte indelével produzida pelo meu flautista favorito, eu sonhava em ver isso ao vivo e conhecer o sujeito por trás daquilo tudo. Principalmente porque ele próprio havia lido o que escrevi e respondido com um comentário super elogioso e gentil. Pois então, quando acabou o show, ele naturalmente desceu do palco e começou a arrumar suas coisas - e de uma maneira tão corriqueira e natural, meus amigos, que foi muito fácil estender a mão para ele de onde eu estava e agradecer-lhe, como é costume por aqui, pelas belas tunes. Muito educado, ele agradeceu, a princípio com um olhar meio incógnito. Apontei para ele os meus parceiros Mila Maia e Gustavo Lobão, que lá estavam também, e disse que nós, ao lado da minha dileta esposa Paula, éramos do Pint Diário, a revista responsável por um certo artigo que ele talvez se lembrasse, sobre o seu álbum mais recente. Imediatamente, seu semblante mudou e ele abriu um grande sorriso, pulou do palco e me deu um abraço dizendo “you’re the man!!”
Em choque, senti-me grato que a Mila e o Gustavo estavam lá e me ajudaram a preencher o silêncio enquanto eu processava o que acabara de acontecer. Contamos a ele que havíamos todos mudado para Galway diretamente de São Paulo, em busca de aprender e respirar mais música irlandesa. Ele perguntou-nos, então, o que tocávamos e, ao ouvir as respostas, falou:
“Puxa, dois flautistas na platéia, é muita pressão! Espero que eu tenha tocado direitinho!”
Trocamos mais uma idéia rápida e então seguimos nossos caminhos de volta para Galway, deixando o Deus da Whistle terminar seus afazeres e tocar sua vida em frente – ninguém gosta de gente te alugando demais quando você acabou de terminar um show. Ao nos despedirmos, ele fez questão de nos dar mais um forte abraço.
Voltei silencioso no carro, absolutamente estupefato com a música que eu presenciara e, em igual medida, com o abismal exemplo de atitude artística que aquele sujeito nos deu. Uma vez um querido amigo que morou em Pequim me falou que os chineses, quando estão brindando copos de bebida, têm a tradição de demonstrar respeito pelos companheiros abaixando os copos para que o outro brinde por cima – e que às vezes isso gera uma divertidíssima competição de humildade, em que copos são abaixados um atrás do outro até que o brinde quase chega no chão. Curioso que, num momento em que estou em tanto contato com os músicos irlandeses e com esse fazer artístico típico daqui, tenho ao mesmo tempo entretido grande interesse por certas vertentes da filosofia chinesa como o Taoismo, que fala muito sobre espontaneidade, sobre pegar leve com as nossas imagens infladas de nós mesmos, sobre seguir o curso natural das coisas e assim encontrar um tipo de felicidade e fruição que independe de coisas como fama e sucesso. Parecem ressoar muito com esse tipo de pensamento esses artistas do trad que, ostensivamente humildes e "normais" colocam-se quase indiferentes a toda a fama e sucesso que gozam. Algo me diz, aliás, que não sou o único que pensa assim. Seja lá por quais vias, Brian Finnegan parece também ter nutrido uma associação por essas linhas, como sugerido no nome da música que encerrou o show: “Flow: In The Year Of Wu Wei":
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