Era uma sexta-feira comum ensolarada na cidade de Galway. Quer dizer… estava ensolarada, então talvez já fosse um sinal de que não seria um dia qualquer. Acordei inspirada para tocar tunes e me lembrei da minha atual session favorita, que acontece toda sexta-feira à tarde em um dos pubs mais badalados da cidade - o Monroe’s Tavern. Cheguei lá um pouco mais cedo para garantir um banquinho e pegar um pint com calma e pedi licença aos músicos que já estavam aprontando seus instrumentos.
Essa é uma session especial na cidade e é relativamente nova. Começou após o “fim” da pandemia, quando as coisas começaram a voltar ao normal, e recebe pessoas renomadas da cena da música tradicional - Steph Geremia, Michael Chang, Michael McGoldrick, Sean Smyth, Seamus Begley, Kevin Hough, Ger Clancy… alguns mais famosos e outros não, mas são músicos que carregam a linguagem de maneira única, não tocam na velocidade da luz e trazem tunes não tão convencionais. Para mim, é praticamente ir a um workshop para explorar novos repertórios e está sendo bem importante para incorporar uma linguagem mais profunda.
O clima estava ótimo e era o auge do verão. A mesa da session fica bem perto de uma janela, que por causa do clima estava aberta, e que dá direto para a rua. É divertidíssimo ver a reação das pessoas passando por ali. Vários turistas, conhecidos e também outros artistas que acabam se rendendo e se juntando a nós.
Estava tudo ótimo até que Steph vira para mim e fala “Mila… desculpe! Esqueci de avisar que a session de hoje é em mi bemol! Você por acaso tem uma flauta nesse tom?” (Rápida explicação: Normalmente as sessions acontecem em Ré, que é a afinação padrão de vários instrumentos do estilo e permite que todos toquem no mesmo tom… mas de vez em quando acontecem em outros tons, por conta dos acordeons e também por escolha de uma textura de som). Eu só estava com a minha flauta cromática, que é a que eu normalmente carrego comigo para lá e para cá justamente por poder tocar em tons diferentes e transitar por outros estilos musicais. Disse que tudo bem e que eu tentaria transpor as tunes para Mi bemol e que até seria um bom exercício.
A session começou e eu estava até curtindo o meu exercício de transposição, tocando tudo mais pianinho e as vezes quebrando a cabeça com aquelas tunes já meio desconhecidas. Até que Sharon Shannon, uma artista muito recorrente desta session, entra pela porta com um sorriso do tamanho do mundo e com sua mala de rodinhas. Sharon é acordeonista e provavelmente a maior “superstar” do mundo do trad. Se você ainda não a conhece, nós já escrevemos um artigo sobre ela (Leia aqui!). Ela passou cumprimentando todo mundo e pedindo licença para sentar em um canto específico do sofá onde ela sempre fica. Toda vez que ela entra para a session eu preciso me beliscar para lembrar que aquilo é real. Mas, ao mesmo tempo, já era de costume vê-la algumas vezes por mês. Ela, sempre educada, se lembrou de mim e veio me cumprimentar dizendo “Tudo bem com você, Mia?? Mia, certo?” - Corrigi dizendo que na verdade era Mila - “Ah sim! Mila! Você tá tocando tudo na flauta cromática?? Mas deve estar sendo muito difícil isso! Quer saber, eu tenho uma tin whistle em mi bemol no meu carro, quer que eu pegue?? Deixa que eu pego pra você!!” - eu disse para ela não se incomodar e que estava tudo bem, mas ela insistiu - “Não, faço questão! Vamos lá comigo!!” - e eu continuei fingindo a maior normalidade do mundo indo até o carro dela para pegar a tal tin whistle. O carro estava ali pertinho, mas no caminho ela deve ter parado para cumprimentar umas quinze pessoas. E eu ali, com cara de paisagem.
Voltamos ao Monroe’s e realmente, ficou muito mais fácil tocar as tunes na whistle em mi bemol, e que honra que era estar tocando na tin whistle dela! Era uma ótima whistle por sinal. Pesada, com um bocal lindo e vinha em uma caixa bem simples de madeira escrito com caneta preta “Fucking Eb” (traduzindo de um jeito bonitinho - “Maldito Mi bemol”). Achei aquilo fantástico. Após várias tunes e conversas, eu estava ali extasiada com aquele dia lindo, aquela música e aquele belo pint de Blue Moon. Eu tinha meio que combinado com o Gustavo Lobão de nos encontrarmos ali, mas nada de ele chegar… e era a única coisa que estava faltando para o dia ficar perfeito. Até porque eu estava louca para mostrar pra ele a tal tin whistle da Sharon Shannon. Até que vejo um rosto bem familiar com óculos escuros, cabelo grisalho e um bouzouki nas costas passando pela janela, que chegou sorrindo para todos. Era ninguém mais ninguém menos que Donal Lunny! Não só um superstar, mas uma lenda da música tradicional irlandesa. Donal Lunny foi integrante dos Planxtys (Leia aqui!) e podemos dizer que foi um dos responsáveis por muito do que conhecemos de música irlandesa hoje em dia. Eu já havia conhecido ele em Limerick muitos anos atrás e ele sempre aparece no show de alguém como convidado especial - mas ver ele entrando na session foi algo único. Naquele momento eu peguei meu celular e escrevi para o Gustavo “VENHA AGORA, NÃO QUERO SABER!”...”DONAL LUNNY CHEGOU AGORA”. A sorte é que ele mora a uma quadra do pub e conseguiu vir rapidinho. Ficamos os dois ali, eu com a tin whistle da Sharon Shannon e ele com seu bodhrán, literalmente sentados ao lado de Donal e Sharon, fingindo costume. Pode parecer bobo, mas eu e o Gustavo começamos nossa jornada pela música tradicional irlandesa juntos na adolescência e passamos por muita coisa desde lá. Estar ali naquele momento, em uma das cidades que mais vive a música tradicional, junto a todos aqueles músicos e sendo muito bem recebidos foi uma sensação única, e que se pudéssemos voltar no tempo e contar para nós mesmos que aquilo estaria acontecendo, nós provavelmente não acreditaríamos.
Mas teve um momento naquela tarde inesquecível que foi particularmente especial - o momento da pizza! Pois é, chega uma hora que o pub oferece pizza gratuita para os músicos da session e todos param por um momento para comer, antes de voltar a tocar mais tunes. Sim, eu gosto muito de pizza, mas não foi a pizza em si que foi inesquecível. Foi o momento em que só eu e Sharon estávamos com as mãos livres enquanto todos estavam comendo, e ela virou para mim e disse “Mila! Puxa uma tune para a gente tocar!”. E eu puxei uma valsa que escutei há muitos anos no álbum Transatlantic Sessions, que é justamente tocada por ela, Donal Lunny e mais outros músicos fantásticos. Fechei os olhos e fiquei escutando o acordeon e a minha tin whistle sendo tocados juntos, e ao vivo! Eu não estava acompanhando um álbum.. Era ela logo ali! Continuei com os olhos fechados e comecei a escutar o bodhrán do Gustavo, o bouzouki do Donal Lunny e um fiddle se juntando a nós. Não quis pensar muito naquele momento porque não queria me emocionar e estragar a tune, mas foi uma sensação que eu nunca vou esquecer. Quando a tune acabou e todos aplaudiram, respirei fundo, dei um gole no meu pint e escutei a voz de Sharon dizendo “Lindo, Mia!”. Continuei fingindo normalidade, mas acho que minha cara deve ter entregado que aquele foi um dos momentos musicais mais importantes na minha vida.
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