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KAN – Uma Pérola Da Música Irlandesa Moderna

Atualizado: 21 de abr. de 2023



Devo aqui confessar que cheguei a entreter uma certa resistência com o uso da bateria na percussão irlandesa. Não me refiro, claro, às derivações roquenrôllicas da Irish Music, brilhantemente iteradas por bandas como Flogging Molly e Terra Celta, mas, sim, a uma incorporação meio desavisada, que muitas vezes mais me parecia ancorar a música instrumental em um terreno familiar de ritmo e técnica que pouco conversam com as melodias tradicionais. Um besta preconceito da minha parte, bem sei, mas fundado naquele algo do que eu já havia ouvido que me remetia muito mais ao cansado New Age do que ao aventurar-se por novos horizontes musicais com a introdução de instrumentos menos ortodoxos. Isso foi até eu ouvir o KAN – a banda que me abriu as portas da percepção para uma porção de novos conjuntos que andam construindo um desdobramento cada vez mais vanguardista da música celta.


Formado por Brian Finnegan, flautista e whistler da renomada banda Flook; Aidan O'Rourke, fiddler do inovador conjunto Lau; Ian Stephenson no violão e baixo; e Jim Goodwin fazendo as boas vezes da percussão e bateria – o KAN lançou apenas e tão-somente um álbum antes de se dissolver novamente no mar dos instrumentistas contemporâneos da música irlandesa e escocesa. E vou dizer para vocês: que álbum!


Sleeper, o dito cujo, pode ser ouvido no Spotify da banda, apesar de não se tratar de uma busca absurdamente óbvia para o pobre algoritmo do serviço de streaming (que ainda chega a confundir a banda com alguém que uma vez acompanhou a cantora birmanesa Shwe Yi Phyo Maung – me pergunto quantos birmaneses também não descobriram a música irlandesa por acidente). Fica, pois, o link ao final deste breve elogio a esta que é uma aventura por possibilidades inexploradas da Irish Music, trilhada e apresentada com uma maestria de quem se vale de décadas de versatilidade numa linguagem para criar uma poesia em termos próprios. Com o perdão do tom afetado, por vezes me pego comparando o sr. Finnegan com um José Saramago da música irlandesa. Quem já se arriscou a aprender os temas de sua composição talvez já tenha encontrado uma dificuldade a mais, que , apesar de deixarem claro que os caminhos que mestre Finnegan traça remetem e remontam às raízes da sua música, de fato surpreendem e subvertem expectativas como um sagaz roteiro de Breaking Bad, que nunca nos leva para o lado que a priori suporíamos.


E aí está: que lado seria esse para onde o Kan nos leva? Vale, sequer, o esforço de rotulá-lo, nem bem absorvido foi, após 10 anos de seu lançamento? Esse é, observo, o caminho que a música celta contemporânea toma cada vez mais, fronteado por bandas como The Gloaming, Elephant Sessions, Kíla, Beoga e KAN: o de abrir caminho por matagais inexplorados – não diferente de como foi com gêneros como o Jazz, que só foi se chamar Jazz depois de bem assimilado e delimitado pelo pensamento comum e pela mídia.


Uns três anos depois de ouvir o álbum pela primeira vez, ainda sou mistificado pela primeira faixa, One Two Three, que, apesar da leveza e aparente simplicidade, não revela muito de sua natureza à primeira vista, e nos deixa rendidos a uma coleção de sentimentos e emoções pitorescas. Mesmo as interpretações que fazem de tunes de estrutura mais convencional, como a Oblique Jig (em Marcos), levam um sabor que é arriscado sem ser espalhafatoso, firmemente enraizado no tradicional sem contudo temer que ângulos inusitados seus galhos possam produzir.



Uma pena, então, que apenas este álbum tenham produzido os admiráveis instrumentistas da KAN, mas algo que talvez o faça ainda mais valioso. Recomenda-se uns bons 50 minutos de silêncio e paz para degustar com atenção as suas várias camadas musicais e sentimentais. Uma excelente sobremesa após um show orquestral dos Chieftains repleto de convidados especiais. Harmoniza bem com um vinho rosé, ou uma India Pale Ale de sabor mais cítrico, bem como um assoalho firme que faça ressoar boas marcações rítmicas com os pés.



EDIT: Após escrever este artigo, continuei meus garimpos internéticos atrás de informações e gravações do KAN, e me deparei com algumas coisas surpreendentes. Aparentemente, nem todo o repertório da banda foi contemplado em Sleeper, como podemos ver nessa versão ao vivo de "Night Ride To Armagh", no Festival Internacional Do Mundo Celta de Ortigueira: tão épico quanto a música tocada no palco é a energia do público que pula e se descabela ao som do Kan!



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