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Karate Irlandês, parte II: Como Eu Aprendi a Parar de me Preocupar e Amar a Luthieria



Fazia mais ou menos um mês desde que eu começara a trabalhar na oficina de luthieria do renomado Paul Doyle, fazendo todo tipo de reparo, acerto, enfim, em uma porção de instrumentos. No começo, fiquei um pouco confuso porque Paul me havia informado que, antes de mais nada ele iria me treinar (dado que, desde o primeiro momento, deixei claro que eu não tinha nenhuma experiência com luthieria), e só lá pelas tantas que fui entender que esse era o treinamento. Lixei uma harpa de carvalho (pesada feito a peste) até deixá-la pronta para envernizar e fiz um belo entalhe nela, cortei uma prancha de sequóia para uma guitarra elétrica e colei uns longos pedaços de cerejeira para o braço, refiz a estrutura de barras internas de um bouzouki… entre tantas outras coisas que não me lembro. Isso tudo foi, segundo o Paul, uma série de tarefas divertidas que ele me colocou para fazer que o ajudariam de alguma forma, me treinariam nos vai e vens da oficina e revelariam o que eu poderia fazer que melhor serviria ao negócio dele. Divertidas eram, sem dúvida, mas também muito cansativas.




Veja bem: estamos falando de um período pós-pandêmico tão recente que na verdade as restrições de proximidade e lotação dos bares ainda estavam perfeitamente operantes. Isso para dizer que, quando passamos quase dois anos trancados em casa sem fazer muita coisa, o nosso corpo e a nossa mente perdem um pouco o costume – o “condicionamento”, digamos assim – das rotinas de trabalho e a forma física fica inconvenientemente comprometida. Tá certo que o Brasileiro é nada menos do que um atleta no que no diz respeito a “condicionamento físico e mental” para trabalhar pesado, mas se depois de dois anos de Pandemia você de repente cai num país novo, com toda uma vida para organizar do zero, e começa a trabalhar usando força e resistência física e psicológica de segunda a sábado, o cansaço que bate no fim da semana é assustador.


Cansaço é uma coisa que se manifesta de maneiras bastante sorrateiras. Quero dizer, além dos olhos pesados, do corpo mole e da dificuldade de pensar direito… depois de um tempo a gente começa a ficar mal humorado e tudo parece muito difícil. Sem perceber, vamos tomando decisões cada vez mais pensando na energia que vamos economizar, e eventualmente a gente não quer nem se abaixar para pegar a caneta que caiu, e prefere escrever com o pedaço de ébano que está mais perto da mão. E vamos ficando cada vez mais frustrados com nós mesmos e com a nossa crescente incapacidade de ver as coisas legais que estão acontecendo à nossa volta – tipo estar trabalhando como luthier em Galway, cara! Então não me entendam mal: eu estava nas nuvens de felicidade por ter conseguido finalmente me mudar para a Irlanda (depois de remarcar a passagem duas vezes graças às recaídas internacionais da Pandemia) e, mais ainda, por estar ganhando meu dinheirinho aprendendo algo que sempre me pareceu tão desejável e factível quanto virar astronauta. Mas a verdade é que quando chegava no sábado de tarde a única coisa que eu conseguia fazer era desabar na cama e fritar os miolos de raiva por não conseguir ir tocar na session de noite.




Veio então o Natal, um belo feriado de dois dias aqui, que me permitiram um longo sossego de recuperação. O burnout era tão grande que eu só fiquei deitado – no primeiro dia. No segundo, eu comecei a ser visitado por pensamentos que insistiam em me sugerir formas de resolver problemas que eu encontrava no trabalho, visões de como tratar esse e aquele instrumento, idéias de projetos futuros… e começou a acometer-me uma certa vontade de voltar à oficina. Por isso mesmo, fiquei muito frustrado quando, no dia 26 de dezembro, recebi uma mensagem do Paul pedindo para que eu voltasse só depois do Ano Novo, pois ele havia contraído o diacho do Covid. Minha inquietação e saudade da oficina só era superada pela preocupação com mestre Paul – diabético e vítima de 4 AVCs e um ataque cardíaco, isolado em quarentena covídica. Enquanto torcia pela melhora dele e mantinha contato constante, perguntando se ele precisava de alguma ajuda, que eu levasse comida para ele ou o que fosse, tive muito medo por ele. Honestamente, não creio que, na minha (relativamente breve) história profissional, eu tenha sido tão bem tratado e ensinado por alguém. Paul tem algo de tão verdadeiro e autêntico que vai se revelando aos pouquinhos, com a convivência, que é muito difícil descrevê-lo. Sempre muito cansado e um tanto abatido pelos problemas de saúde que teve, ele canaliza toda a energia que tem para seus olhos aguçadíssimos e extremamente expressivos – olhos que são tão capazes de classificar dezenas de tipos de madeira cobertos de poeira, medir 1mm sem o auxílio de uma régua e expressar uma felicidade imensurável toda vez que novas pranchas de madeira eram entregues na sua oficina. As palavras “Brazilian rosewood” fazem aqueles olhos brilharem como uma criança que se maravilha com o mundo pela primeira vez. E ele tem uma forma muito silenciosa e inconspícua de manter seus aprendizes contentes e tão maravilhados quanto ele – a prova disso é que, frequentemente, a oficina recebe visitas de pessoas que já trabalharam com ele ou foram ensinadas por ele. A última ocasião em que eu o vi, antes deste episódio do Covid, foi no jantar de Natal que ele pagou para mim e para todos os seus amigos – a maioria deles, ex-aprendizes. Um deles, um americano, foi quem me chamou atenção para essa habilidade formidável que ele tem de medir coisas, com uma exatidão assombrosa, simplesmente batendo o olho nelas – ao lado da capacidade que ele tem de ensinar as pessoas a fazerem instrumentos incrivelmente bonitos e potentes só com instruções muito simples. “Você já viu Karate Kid?”, perguntou-me aquele americano – “o Paul é o senhor Miyagi, você não acha?”





Vocês acreditam que eu nunca tinha assistido Karate Kid? Só aquele remake meio constrangedor com o filho do Will Smith que vai pra China aprender Kung Fu com o Jackie Chan, o que absolutamente não faz jus a belíssima mis en scène oitentista do filme original, repleta de belas lições e banhado numa trilha sonora gloriosa. Ora, quando Paul me avisou que precisaria ficar ainda outra semana de quarentena depois do ano novo, minhas férias estendidas foram muito bem aproveitadas tirando o atraso deste clássico do cinema. E a minha conclusão foi que, de fato, a semelhança entre mestre Doyle e mestre Miyagi é tão improvável quanto assustadora. Instantaneamente ficou muito claro para mim: aquele “treinamento” dele, lixando isso e aquilo, cortando isso e aquilo, eram formas de ir me familiarizando com os movimentos, materiais e instrumentos que são feitos por lá.




E então, lá pelas tantas, Paul chegou para mim com muita tranquilidade e confiança, informando-me de que eu haveria de construir uma mandola. Do zero. Para um cliente. Da Suécia. Sem nunca eu ter construído sequer um monocórdio. Fiquei receoso, ansioso, acometido por toda sorte de síndromes do impostor? Lógico que sim. Mas, tão logo comecei a seguir as instruções do Paul, aquele treinamento despretencioso demonstrou-se tão eficiente quanto os serviços que o Sr. Miyagi passa para seu aprendiz antes de ensinar-lhe karate: eu simplesmente me senti naturalmente fluente nos movimentos e sensibilidades necessárias para construir um instrumento. É meio que nem treinar escalas, sabe? A princípio, parece uma tarefa enfadonha, sem propósito e desprovida de qualquer musicalidade aproveitável – mas quando você tem algumas escalas bem estudadas debaixo do braço, fica tão mais fácil sair improvisando e compondo. Bastava, apenas, saber quais passos seguir nessa composição de um novo instrumento.



E quais seriam esses passos, então?


Meio hesitante com a pergunta, Paul pensou por um minuto e apontou para uma prateleira cheia de todos os tipos de madeira, de todos os tamanhos, espécies e formatos. E disse, com tranquilidade:


“O tampo é de abeto. Com 2mm de espessura.”


Se você acha que não saberia muito o que fazer com essa informação, eu estava na mesma posição.




Paul nunca te dá o caminho das pedras por inteiro. Ele não te dá o passo a passo de como fazer o instrumento, ele não te diz muito sobre qual direção você está seguindo: ele apenas te diz qual é o próximo passo. O que a princípio dá uma sensação muito desconfortável de miopia, de se estar dando passos em frente em uma jornada importante sem conseguir enxergar muito mais de um palmo à sua frente. E se você está prestes a cometer um erro, ele dificilmente te avisa. O que parece um pouco irritante a princípio, e invariavelmente leva a horas de trabalho perdidas e peças que deverão ser refeitas – mas algumas semanas disso são suficientes para a gente perceber que, na verdade, ele está te ajudando a descobrir o seu próprio caminho, cometendo os seus próprios erros. Ele sequer tem muita paciência para te explicar como ele faria algo – ele prefere te dizer qual o resultado que você precisa chegar e te confortar dizendo que não tem procedimento correto, que cada instrument maker desenvolve seus próprios caminhos de acordo com o que melhor funciona para si. No máximo, ele olha para algo que você fez e diz “eu teria feito isso diferente”, meio te ensinando e meio te provocando.




E quando a gente fica puto, frustrado, cabisbaixo com a perda de uma peça lindíssima de madeira, ele nos conforta dizendo que precisamos cometer erros para aprender a consertá-los no futuro. Talvez nem fosse a intenção dele, mas com isso ele também me ensinou muito a não levar meus erros tão a sério e não ficar muito tenso com tempo perdido – na verdade, não existe madeira e tempo perdido numa luthieria como a dele, tudo é reaproveitado. Tudo o que parece ter sido perdido fica quietinho num canto da oficina ou da nossa memória, esperando o momento certo para provar seu valor. Meus amigos, vocês ficariam surpresos com a quantidade de elementos exóticos e decorativos que encontramos em instrumentos por aí que são, na verdade, um conserto de alguma barbeiragem cometida no processo de confecção. Paul fala que certos erros são muito legais de se cometer porque nos dão a chance de olhar o nosso trabalho por outro ângulo e botar a criatividade para funcionar, atrás de alguma solução que não desperdice a madeira e nem o nosso tempo. Segundo ele, algumas peças belíssimas surgiram desses consertos.




É impressionante pensar que Paul Doyle conseguiu botar um sujeito como eu, que nunca fez nenhum tipo de trabalho manual com muita seriedade, para fazer um instrumento musical inteiro para um cliente internacional – e que o instrumento parecia, cada vez mais, que ia sair mesmo. E ia sair bom! E ele fez tudo isso sem quase levantar do seu banquinho. Tendo feito centenas de mandolas ao longo da vida, ele tem todas as medidas – TODAS AS MEDIDAS DO INSTRUMENTO INTEIRO – memorizadas. Mais do que isso, ele tem a imagem do instrumento muito clara na sua cabeça. Tão clara que ela praticamente transmite-se sozinha para qualquer aprendiz, como se por osmose telepática. E isso é algo que vale à pena comentar: como ele andara me sugerindo, a receita do bolo não é tão importante quanto você tem o bolo muito bem definido na sua cabeça. Vocês lembram daquela cena do Karate Kid em que o Sr. Miyagi ensina seu aprendiz a podar um bonsai? Pois.




O leitor voraz d’O Pint Diário estaria coberto de razão ao me acusar de cair, cada vez mais, numa enfadonha repetitividade de temas da filosofia oriental, desde que Brian Finnegan lançou um single chamado “Flow In The Year Of Wu Wei” – mas não tenho como não testar mais uma vez a paciência do meu estimado leitor com um poema Zen que li certa vez:


Se você perguntar de onde vêm as flores

Nem mesmo o deus da primavera sabe


Dita de outra forma, a mensagem aí é que o criador que é realmente espontâneo na sua criação não sabe necessariamente como ele faz – ele só faz. O seu ofício é para ele tão natural e feito tão sem esforço quanto respirar ou andar para frente. E, apesar de Paul estar tendo alguma dificuldade para andar para frente desde que sofreu seu último AVC, ele continuava a frequentar sua oficina de segunda a domingo, do meio dia às 22h – não tanto como estratégia de atender a clientela, mas principalmente porque, pura e simplesmente, é isso que ele faz. Esse é quem ele é. Então imaginem vocês o tamanho da revolta deste homem que, por pouco mais de duas semanas, ficou preso em casa sem poder abrir sua oficina.






Mas ao final de um tempo incomodamente longo para nós dois, ele finalmente anunciou que voltaríamos ao trabalho. Também não foi o Covid que derrubou Paul Doyle.





A primeira coisa que Paul me disse foi:


“Como eu não consegui te empregar nessas últimas duas semanas e não pude te pagar seu salário, pensei que, se você quiser, pode fazer um instrumento para você.”





Agradeci muito a oferta e falei que eu não tocava nenhum instrumento de cordas – mas que eu adoraria fazer algo mesmo assim e ia pensar no que. E então prosseguimos com a nossa rotina, com uma motivação e uma perspectiva renovada para encarar esse trabalho daqui para frente. Incrivelmente, não me senti mais tão cansado e revisitar essas lições e ensinamentos do mestre Doyle me fizeram encarar o resto da construção daquela mandola com muito mais despreocupação – e vou dizer pra vocês que a gente economiza muita energia quando a gente não se preocupa. Em maio de 2022, meu primeiro instrumento foi concluído com sucesso e enviado por correio para seu futuro dono, em Estocolmo, na Suécia.


Uma demonstração musicalmente risível do som do instrumento que construí. De fato, a única vez que ouvi a voz dessa mandola.


Duas semanas depois, Paul me cumprimenta uma bela manhã com a seguinte saudação:


“Você vai precisar fazer outra mandola. O correio perdeu aquela que a gente enviou.”


Quase caí da cadeira. Meu coração afundou com o pensamento de que aquele pobre instrumento jamais seria tocado em sua curta vida – afinal, eu mesmo não sou capaz de domar instrumentos de cordas, e Paul não consegue mais tocar nenhum dos 18 instrumentos que ele tocava. Bem no momento em que eu me sentia a última bolachinha do pacote por ter aprendido a ser tão tranquilo e despreocupado, eu me vi absolutamente desamparado, com vontade de marchar até o escritório dos correios e fazer um belo sapateado em cima do balcão. Paul, por sua vez, manteve-se absolutamente impassivo.


“Disseram que o instrumento pode estar em qualquer uma das estações de distribuição dos correios da Irlanda. Bem possível que esteja em Dublin. Ou talvez em alguma conexão pela Europa. Eles estão abrindo uma investigação.”


“E se eles concluírem que o instrumento foi perdido? Eles vão pagar por ele?”


“Bom, a mandola custa 2000 euros. Eles disseram que podem ressarcir até 150 euros.”


Tem cabimento, meus amigos?


“Não acho que vão achar. Eu já falei para o cliente que estamos trabalhando numa nova. Começa fazendo um tampo novo.”



Nunca use ferramentas afiadas com pressa para ir ao banheiro.

E lá fui eu, desacreditado, começar tudo do zero novamente. Paul não se afetou. Se tanto, isso deu a ele a oportunidade que ele tanto gostava de se lembrar e contar histórias sobre instrumentos que ele fez – todos os instrumentos que foram perdidos, extraviados, quebrados… ele contava essas histórias de terror sanguinolentas, mas com a mesma empolgação e o brilho nos olhos que ele sempre tem quando está contando qualquer outra história. Quando eu abri uma pequena fonte de sangue no meu dedo, numa cena bastante tarantinesca, ele me contou sobre um de seus aprendizes que empalou a própria mão com um formão, e deu a sorte de conseguir continuar fazendo instrumentos sem nenhuma sequela. Aliás, o próprio Paul certa vez me gritou por socorro, tendo pisado num formão que por muito pouco não atravessou seu pé por completo – e agora ele conta para todo mundo sobre como eu saí correndo de dentro do banheiro para ajudá-lo a remover a ferramenta que ele não conseguia alcançar. Quase tanto quanto comprar lotes de madeira nova, Paul fica realmente nas nuvens de felicidade quando alguém se interessa em ouvir as histórias dele, e ele abandona qualquer pensamento e atividade quando começa a contá-las. Eu também entretido com os relatos, deixei de lado também minha atarefa de reconstruir a mandola, só por aquele dia. Mas no dia seguinte mesmo, ela reapareceu no mapa, e chegou em segurança em Estocolmo. Meu instrumento seria, afinal de contas, tocado! De fato, é um sentimento indescritível construir um negócio desses. Quem sabe um dia vou atrás de sessions suecas, oxalá vejo a minha mandola tocando alguma tune por aí. Toda vez que um instrumento que o Paul fez reaparece na oficina, é como se ele estivesse encontrando um velho amigo: ele abre seu livro de registro e encontra a anotação que fez sobre aquele instrumento, e conta alguma anedota sobre aquele processo de construção, ou sobre o cliente que comprou. Da minha parte, não registrei essa construção em nenhum livro, mas escrevi este artigo e, antes de me despedir deste novo velho amigo, fotografei-o ele competentemente.





Passada a régua na novela da mandola, ele me disse, como quem recuperava um pensamento que há tempos andava cozinhando em banho maria:


“Eu pensei no instrumento que você me pediu para fazer, e decidi que vou deixar você fazê-lo. Vai ser bem difícil e demorado, mas se você fez a mandola você faz esse também. Mas com uma condição: você tem que fazer um para mim também. Acho que talvez esse seja o único instrumento que a minha mão esquerda ainda consegue tocar”.


Karate Irlandês continua no próximo eletrizante capítulo. Siga o Pint Diário e não perca!


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