Ah, a Nova Era! Um tempo de renascimento, auto-conhecimento, valorização da natureza, de paz, amor, gratidão, luz e yoga duas vezes por semana.
O New Age não só é trilha sonora de um movimento cultural pós-moderno particularmente pitoresco e good vibes: ele é a faca de dois gumes que funciona, de um lado, como porta de entrada para muitos que caem no universo da música irlandesa e, do outro, como barreira de preconceitos simbólicos que impedem outros tantos de se aprofundar e conhecer melhor essas origens musicais. O nosso editor Gustavo Lobão, quando leu este artigo, me contou uma história bastante ilustrativa do que quero dizer: "Deu-se quando eu estava começando a curtir música irlandesa e a tocar bodhrán e o contexto foi eu estar em uma mesa de pizzaria com filhos de amigos dos meus pais que faziam parte de grupos do Encontro de Casais com Cristo, um movimento católico. Não sei se vcs sabem, mas eu por pouco não virei monge... Nessa mesa estávamos falando de gostos musicais, e eu comentei que gostava de música celta e bandas como The Chieftains e The Corrs. Uma menina, que tinha sido Wicca mas se converteu e ironicamente tinha acabado de dizer que gostava de Pink Floyd e Yes (que eu também gosto), ficou um pouco espantada com a minha afirmação e perguntou se eu sabia o que essa música era, se referindo a religiosidade anterior dela e, portanto, não adequada a ouvidos católicos. Eu respondi que sabia. Na verdade, quem não sabia era ela que a música que eu tanto gosto era de fato elemento identitário dos católicos da Irlanda, muito mais preocupados com uma ameaça protestante do que pagã." Não precisa ir muito longe: trabalhando como produtor de uma banda de música irlandesa, na missão de vender shows São Paulo afora, já ouvi muitos comentários de potenciais clientes como "aqui não tocamos New Age, só gêneros mais artísticos, como jazz ou samba". Ou então "é tipo a música do Harry Potter?"
De fato, não só é bastante nebulosa a definição real de "música celta", como pode ser incrivelmente capcioso chegar a algo mais sólido, nesse sentido, se não soubermos bem onde procurar. Se o Google não tiver motivo para inferir que você está buscando “música celta” de fato (como as que apresentamos n’O Pint Diário), seus algoritmos de busca acharão mais prudente te direcionar para obras tingidas de sintetizadores misteriosos e tin whistles com mais reverb do que um órgão de igreja, pianos neoclássicos, vocais digitalmente afinados, baterias eletrônicas e temáticas fantasiosas. O YouTube mesmo está apinhado de títulos como “Música celta para meditação”, “Música celta da cura xamânica”, “Música celta quântica”, “Música celta ancestral dos espíritos da floresta”, "musica celta para relaxar, Removedor Energias Negativas Reverte Obtendo Força, Energia Vital, musica celta" e assim por diante até chegarmos no famoso terraplanismo musical: “A=432hz”. Sem sombra de dúvidas, um certo caos de definições, origens, derivações e misturas é característica marcante da arte pós-moderna, então vale imensamente à pena a aventura de tentar desembaraçar um pouco esse novelo de lã que é a história do New Age e a sua (relativamente limitada) relação com a música irlandesa. Goste ou não do estilo – não cabe aqui emitir julgamento de valor estético – garanto que essa viagem vale à pena.
A POLÊMICA HISTÓRIA DE UMA ERA QUE QUASE FOI NOVA
Nossa aventura começa na metade do século XX, um momento particularmente otimista da história da sociedade ocidental (leia-se: da Europa ocidental e América Do Norte), quando os espólios da Segunda Guerra Mundial colocaram o conhecido “Primeiro Mundo” em uma posição invejável de estabilidade e crescimento econômico e tecnológico. A publicidade da década de 50 é notória pelo otimismo plástico (que beira a inocência), e a produção cultural e científica da época tomava os mesmos rumos ensolarados. Pasmem: nesta época está inserido um boom de pesquisas acadêmicas sobre saúde mental. Saúde mental? Aquele assunto polêmico que até outro dia parecia estar esquecido e juntando poeira, transformado em tabu e resultando numa geração de pessoas patologicamente deprimidas e ansiosas? Sim! Nessa época, ainda não existia tanta polêmica assim, pelo menos entre a elite intelectual norte-americana. Mais ainda, um dos principais objetos de pesquisas nesse âmbito, que chegou a ser vendido livremente em farmácias da época, era uma substância chamada ácido lisérgico dietilamida, sintetizada em laboratório pela primeira vez pelo químico suíço Albert Hofmann.
Até hoje não sabemos ao certo como funciona o LSD (o que não significa que saibamos muito mais sobre outras drogas que são vendidas na farmácia, aprovadas e consideradas seguras pela Anvisa e pelo FDA), mas os neurocientistas, psiquiatras e psicólogos das décadas de 50 e 60 andavam a passos galopantes no sentido de desvendar os segredos do composto que parecia incitar episódios psicóticos tanto quanto curar quadros depressivos crônicos e dependências químicas. Era um vislumbre que, naquela época, já começava a sugerir que existem alternativas à medicina convencional que, com a merecida atenção e seriedade, poderiam um dia se tornar a própria medicina convencional (na verdade, é assim que a ciência sempre funcionou: tem-se um modelo que funciona bem até o ponto em que ele é feito obsoleto por um modelo novo). Se essas pesquisas tivessem sido levadas adiante, talvez hoje não estivéssemos vendo aqueles últimos alcançando dimensões pandêmicas no mundo ocidentalizado – mas, pelo menos por enquanto, não temos como saber. Em 1970, o governo americano proibiu a venda e a pesquisa com compostos chamados psicodélicos, amedrontado pelo movimento de contra-cultura que criticava a cultura do consumo e competitividade e, pior ainda, colocava em risco a imagem do envolvimento americano na Guerra do Vietnã. Disso derivaram algumas conseqüências infelizes: primeiro, estudar saúde mental e consciência humana virou um certo tabu no meio acadêmico, que preferiu se reservar aos seguros escritos do Dr. Freud aliados a antidepressivos e ansiolíticos químicos como Zoloft, Lexapro, Xanax, Prozac, Effexor, Cymbalta e assim por diante. Pareceu mais prático ancorar-se no modelo que já funcionava (até certo ponto, pelo menos) para não balançar demais o barco, e, por segurança, canonizá-lo como O modelo. Para a indústria farmacêutica, isso era bastante vantajoso já que esse tipo de tratamento era muito mais efetivo no sentido da fidelização da clientela, que torna-se dependente desses compostos, às vezes para o resto da vida. Em contraste, já na década de 60 era sabido que, nas condições ideais, uma dose de um composto como LSD poderia ser o suficiente para livrar alguém de um quadro depressivo – um modelo de negócios extremamente ineficiente e pouquíssimo lucrativo. Em bom português: o estudo desse tipo de tratamento em condições favoráveis e controladas poderia ter levado a uma nova era de entendimentos e domínio sobre a mente, suas aflições e potenciais, de uma forma realmente revolucionária (em tempo: não me refiro a nenhum tipo de revolução econômica como as propostas por alguns economistas alemães do século XIX)!
Mas O Pint Diário não se propõe a discutir a farmacologia e aspectos morais de tratamentos psiquiátricos – o que nos compete é contar como esse momento histórico se desenrolou até culminar na música dos créditos de “A Sociedade Do Anel”, cantada por uma moça talentosíssima que se apresenta como Enya, e, posteriormente, numa febre de tin whistles que tocam apenas e tão-somente o tema dos Hobbits. Para quem se interessar mais pelo assunto anterior, recomendo: inúmeras publicações de cunho científico estão sendo produzidas hoje a respeito do renascimento das pesquisas com psicodélicos (finalmente liberadas pelo FDA em 2006), como o bestseller “How To Change Your Mind”, de Michael Pollan, o prolífico “The Psychedelic Explorer’s Guide”, do Dr. James Fadiman e o popular documentário da Netflix “Have A Good Trip”.
JÁ DIZIA RAULZITO: VIVA A SOCIEDADE ALTERNATIVA
Essas pesquisas de fato arregalaram os olhos de muitas das mentes mais brilhantes do ocidente, incluindo notórios professores das universidades de Harvard e Stanford, entre outras – e trouxeram uma perspectiva nova e revolucionária para jovens que buscavam uma mentalidade mais verdadeira e humana, uma alternativa à cultura que consideravam excessivamente bélica, consumista, superficial, materialista, egóica e cheia de falsos moralismos, e que já sabotava muito do otimismo cego e desenfreado do ocidente. Muitas das afortunadas discussões atuais acerca de direitos humanos, feminismo, ambientalismo, pacifismo e saúde mental derivam diretamente do movimento hippie, ou movimento de contra-cultura, dos anos 60.
O fato inegável, que é antes estatístico do que politicamente motivado, é que a maioria das pessoas que fizeram uso de compostos enteógenos (também chamados psicodélicos) em situações ideais e responsáveis relataram uma espécie de “acordar” para a simplicidade da vida e para a beleza do momento presente, para uma clareza maior de pensamentos e uma liberdade subjetiva sem igual, para o desenvolvimento inédito de um amor próprio e uma solidariedade com o próximo que antes era quase utópica – de forma que uma série de bandeides e muletas que o homem moderno usava para se motivar, entreter e distrair de repente se revelaram obsoletos e prejudiciais: daí a rejeição do movimento hippie para com o consumismo, o materialismo, as competitividades capitalistas e os desejos de ser melhor do que o outro – e daí o ideal de retorno à natureza e à simplicidade. Não cabe aqui nos enveredarmos pelas complicadas explicações da neurociência que justificam esse efeito de "união com o universo" e "transcendência do ego" a que me refiro, mas, independente das inúmeras narrativas ecumênicas que foram produzidas para dar nome a esses bois, posso dizer com segurança de que não é mágica, é fisiológico. E revolucionário, sem sombra de dúvidas. Pesquisas mais recentes revelaram que, nas condições corretas, as pessoas classificam uma experiência psicodélica como “a mais” ou “uma das mais” espiritualmente significativas de suas vidas, comparável ao nascimento de uma criança, e libertador de amarras e barreiras psicológicas profundas – cura, como já foi documentado, para aflições como alcoolismo, medo da morte em pacientes com câncer terminal, transtornos de estresse pós traumático (como os que sofrem os veteranos de guerra) e quadros depressivos tidos como “intratáveis”.
Nessa época, a Enya era apenas uma criança e estava muito longe ainda de produzir seus hinos de paz e amor com cheiro de incenso – mas foi nesse contexto que começou uma produção musical que tinha por paradigma um novo olhar mais humano e pacífico por um lado, e rebelde por outro. Esse sentimento de que “de repente descobrimos o sentido da vida, e ele chama amor” foi o que ecoou pela música sessentista: os ideais de artistas como os Beatles, Janis Joplin, Jimmy Hendrix e The Doors era a revolta contra um sistema que oprimia com paradigmas falaciosos que já não faziam sentido. A utopia era substituir guerras e competições pelo sentimento de que todos pertencemos à mesma humanidade e que, enfim, todos haveríamos de ser livres para amar e curtir a existência pelo simples prazer de existir.
Era um movimento alimentado por obras como “The Psychedelic Experience”, de Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert, “The Doors Of Perception”, de Aldous Huxley (o mesmo escritor de “Admirável Mundo Novo”; incidentalmente, o autor também inspirou o nome da banda de mestre Jim Morrison) e “Be Here Now”, de Ram Dass (nome que marca um desenvolvimento pessoal do psicólogo de Harvard Richard Alpert). Este último é quase uma fundação da história arquetípica do ocidental perdido que viaja para a Índia em busca de respostas e acaba passando por um longo treinamento em filosofias e práticas orientais milenares antes de retornar, transformado, à sua terra natal com o intuito de difundir aqui um caminho que nos falta para nos conhecermos e amarmos mais.
Não foi senão por pura identificação que as filosofias do budismo, hinduísmo e taoísmo caíram nas graças daquele monte de jovens desiludidos com a cultura ocidental, que buscava avidamente por uma forma nova de ver o mundo que fosse mais compatível com a experiência que eles almejavam e sentiam como “verdadeira”. Torno a lembrar que tudo isso que conto é de um ponto de vista estritamente científico e pragmático: pesquisas recentes revelaram que o cérebro de um monge budista experiente meditando é assombrosamente semelhante a um cérebro sob a influência de psilocina (o componente psicodélico dos “cogumelos mágicos” do gênero psilocybe). Na verdade, consta que psicodélicos nada mais são do que um "atalho" que facilita para o cérebro produzir um mesmo estado neurológico que pode ser treinado por meio da meditação – e essas filosofias ofereciam um "manual de instruções" para esse treino (codificado, claro, em uma linguagem de metáforas e alegorias). Em outras palavras: ficou claro, desde aquele momento, que essas filosofias orientais ofereciam idéias e práticas desenvolvidas ao longo de milênios para cuidar da saúde mental e fomentar um auto-conhecimento que o ocidental sequer imaginava ser possível: cara, de repente dá pra treinar o cérebro pra ser feliz sozinho, sem precisar tirar férias na Disney e nem comprar um carro novo! O que não significa que SÓ os conceitos orientais eram capazes de trazer essa felicidade – e menos ainda por razões necessariamente mágicas, metafísicas ou sobrenaturais: ao menos de um ponto de vista secular, o que começou a se escancarar era que o paradigma de felicidade ocidental não era nem o único e nem de longe o mais eficiente. Na verdade, ele se revelou tristemente rudimentar. E calhou que alguns pensadores orientais tinham chegado num outro paradigma de felicidade que era muito mais simples e eficiente. O monge budista tibetano Tenzin Mingyur Rinpoche fala, em seu livro "The Tibetan Yogas Of Dream And Sleep", que nós, ocidentais, temos mesmo a tendência de exigir demais das metáforas do oriente, descartando-as se não correspondem a um dado objetivo-descritivo da realidade – ou, em outros casos, interpretando-as literalmente para forçá-las a se encaixar na nossa forma de ver o mundo, muito apoiada nessa expectativa da correlação direta entre conceitos e realidade.
Isso tem a ver, mais do que com os personagens da mitologia oriental, com um axioma básico dessa mitologia, que a difere da ocidental: segundo o antropólogo e mitólogo Joseph Campbell, em seu livro "As Máscaras De Deus: Mitologia Oriental", uma das mais fundamentais diferenças entre a mitologia oriental e a ocidental é a origem do humano em relação ao divino. Nos mitos ocidentais, Deus criou o Homem e é, desde a origem, separado dele e maior do que ele – de forma que estamos sempre condenados a uma posição inferior, dualística, e de ignorância com relação aos "círculos misteriosos" do divino, e o nosso movimento é o de buscar nossas soluções e sabedorias fora de nós (em Deus, ou em qualquer outra fonte que confiemos, como um remédio para dor de cabeça ou um pint no fim do dia). Já a mitologia oriental parte de outro pressuposto: o humano É o divino, inseparável dele, e um com todo o universo – e, portanto, nosso caminho é o de descobrir, dentro de nós, a força criadora da nossa humanidade e "acordar" para o fato de que todas as respostas e soluções que buscamos está dentro de nós desde o começo. No hinduísmo, por exemplo, nós somos todos personagens de um sonho de Vishnu – logo, nós somos vários aspectos de Vishnu, da mesma forma como os personagens dos nossos sonhos são manifestações do nosso inconsciente. Mais ou menos, aliás, como n'O Silmarillion de Tolkien, em que tudo o que há é fruto do pensamento de Ilúvatar e da música dos Ainur. Acredite ou não na literalidade das narrativas que transportam essa mensagem, o ponto é que está aí um pilar importante da fundação do que chamamos de mentalidade e cultura ocidental e oriental, que reverbera nas nossas vidas e escolhas cotidianas, e de que muitas vezes nem nos tocamos.
E nem só de orientalismos viveu a contra-cultura: paralelos surpreendentes foram encontrados, também, em tradições xamânicas das Américas, por exemplo – paralelos que teriam sido reconhecidos também pela academia, décadas depois. Ainda hoje, documentários como "O Último Xamã", de Raz Degan, e livros como "Thus Spoke The Plant", da Dra. Monica Gagliano, retratam essa busca do ocidental pelas medicinas e espiritualidades alternativas dessas culturas.
Por outro lado, como ilustrar, em termos de ciência ocidental, a mensagem da mitologia oriental ou do xamanismo indígena? Bom, podemos tentar criar um paralelo com algumas pesquisas recentes da neurociência que mostram que a nossa forma de interagir com a realidade é por meio de um modelo (bastante realista, de fato) que o nosso cérebro cria dela: segundo o Dr. Anil Seth (professor de neurociência cognitiva e computacional e co-diretor do Centro Sackler Para Estudos Da Consciência da Universidade de Sussex, entre tantos outros títulos que deixariam Daenerys Targaryan no chinelo), nosso cérebro "alucina" a nossa realidade. Ou seja: nós não vivemos a realidade, nós vivemos o modelo que o nosso cérebro cria dela com base numa filtragem bastante rigorosa dos sinais que os nossos sentidos captam. E continuamos vivendo este modelo mesmo se totalmente privados dos nossos sentidos: nesse caso, chama-se sonho! Portanto, nós somos os criadores de tudo o que vivemos e experienciamos, e a única realidade que vamos conhecer é a que o nosso cérebro criou: basta que nós "acordemos" para este fato, para além das meras palavras descritivas, e é isso que promove uma sensação inexplicável de leveza e união com o universo. Quem já fez psicoterapia também não é totalmente estranho ou estranha à idéia de que nós criamos o mundo em que vivemos.
É claro que a distinção entre esses dados objetivos e a codificação deles raramente é levada em consideração. Em outras palavras: é muito fácil nos acharmos seduzidos pelo sistema simbólico de uma cultura que, por um motivo ou por outro, ressoa conosco – de forma que confundimos as narrativas fantasiosas de certas constelações mitológicas (ou mesmo conclusões provisórias da ciência moderna) com o efeito que elas produzem na psicologia humana. É a diferença entre “significante” e “significado”, para quem já estudou semiótica na vida. Para simplificar ainda mais: um mantra em sânscrito não tem nenhuma propriedade mágica em si, e o sucesso “curativo” das práticas meditativas que eles envolvem acontece quando atribuímos valor simbólico para eles. Como veremos no próximo artigo dessa série, uma Irish session pode ser tão eficiente (ou até mais) quanto uma roda de cantos de hare krishna, no que diz respeito à meditação e auto-conhecimento. Apesar disso, enquanto emissárias das recém-descobertas possibilidades de expansão de consciência e bem-estar humanos, aquelas filosofias orientais passaram a ser cultuadas aqui em seu próprio nicho de entusiastas: a juventude revolucionária da década de 60 se encantou com as histórias do oriente, alternativas à cultura ocidental que os fazia sentir excluídos e desajustados.
Mas o que tudo isso tem a ver com música celta e sintetizadores? Por enquanto, absolutamente nada: o que temos, apenas, é uma mentalidade revolucionária, não obstante inocentemente imatura, que está prestes a tomar um belo banho de água fria e acabar órfã e carente por uma estética para chamar de sua.
E como, então, “namastê” parou de circular entre essa juventude revolucionária e acabou impresso em almofadas da Tok & Stok? Bom, como eu disse, essa cultura de paz e amor não era nem um pouco boa para os negócios que o exército americano empreendia em solo vietnamita na época, e era igualmente perigosa para a imagem dos políticos que se apoiavam nos desejos mais rasos de alguns eleitores acomodados em zonas de conforto historicistas. Então acabaram com a festa: psicodélicos foram proibidos, pesquisas sobre o assunto foram interrompidas e seus maiores vetores de divulgação foram declarados inimigos da família de bem (foi o caso do ex-professor de psicologia de Harvard, Timothy Leary, declarado “inimigo público número um”). O psico-fisiólogo americano Stephen LaBerge conta que nas décadas de 80 e 90 era o maior suicídio acadêmico tentar enveredar uma pesquisa nos assuntos da consciência e percepção. Um problema particularmente capcioso que surgiu dessa proibição de pesquisas é que uma porção de idéias cruas e ainda mal-desenvolvidas ficou parada no tempo, misturada em conceitos orientais e xamânicos muito (MUITO) complexos que ficaram mal-explicados, mal-compreendidos e esvaziados de lastro simbólico. Por um lado, os jovens não ficaram menos revoltados com "o sistema" e não pararam de usar as drogas que queriam – o que não deveria ser surpresa nenhuma desde que o governo americano queimou o próprio filme na década de 20 com a proibição de bebidas alcoólicas, dando origem a criminosos notórios como Al Capone e a uma onda de alcoolismo desenfreado e literalmente incontrolável (já que as autoridades simplesmente fingiam que ninguém bebia). Agora, esses jovens estavam à própria mercê, sem nenhuma orientação científica de um lado e nenhum respaldo utópico-cultural do outro. Os casos mais lamentáveis de abusos de substâncias alucinógenas da história ocidental começam aí. E, pelo outro lado, quem tinha achado que, enfim, havia encontrado uma luz no fim do túnel na busca pela felicidade real, contra a egóica cultura consumista e competitiva do pós-revolução industrial, agora estava completamente à deriva e desamparado, agarrado apenas àquele apego afetivo pela retórica das filosofias orientais e xamânicas (uma ironia por si só, já que boa parte desses sistemas de pensamento parte da prática do desapego). De repente, a busca deixou de ser por uma forma de viver o aqui e agora e entender melhor o complexo funcionamento da mente – e passou a ser por um SPA que alinhe os chakras e dê desconto de dia das mães.
FALLOUT
Em seu prolífico e pragmático livro "How To Change Your Mind", o escritor Michael Pollan nos conta que esses movimentos contemporâneos de misticismo e New Age são decorrência, pelo menos em parte, dos órfãos do movimento hippie e das alternativas espirituais e filosóficas que ele também anunciava – órfãos que estão desde então parados no tempo, profundamente amargurados pelo falso progressismo materialista ocidental, e insistindo ainda no mesmo universo simbólico cansado, que a essa altura já está quase totalmente esvaziado do seu valor original de transformação psicológica. Com certeza, é uma imagem bastante cínica e até um tanto reducionista do movimento, mas que, tragicamente, faz algum sentido. Infelizmente, uma parte dessas pessoas que tinham ideais tão nobres acabou perdida nessa amargura, o que levou a fascinações desmedidas por quaisquer boatos e meias-verdades que desafiam o “padrão ocidental” (como a mirabolante idéia de afinar o lá em 432hz a fim de promover curas espirituais, elevando o conceito de "placebo" a novos patamares de glorificação dadaísta), ao desenvolvimento de argumentos pseudo-científicos contra vacinação (já que a indústria farmacêutica não é confiável e ponto final) e até a comunidades extremistas que se rebelam contra o hábito de comer e decidem viver apenas de água e luz (não sem registrar alguns óbitos aqui e ali).
Em outros casos, o vácuo que o espiritualismo oriental deixou foi preenchido pelo encontro com uma recuperação de tradições ocultistas dos séculos XVIII e XIX que andava fermentando na Inglaterra na década de 70, resultantes já de uma busca por significados postiços, típica da pós-modernidade. Com isso, elementos místicos associados à cultura anglo-saxã começaram, também, a se fazer familiares ao caldeirão de ingredientes do New Age.
Em termos gerais, “pós-moderno” refere-se a este período histórico que vivemos, em que, nas palavras do sociólogo Marshall Berman, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, e as pessoas pulam de universo em universo em uma busca desesperada por identidade quando nada mais faz tanto sentido assim. Nas palavras de outro sociólogo importante, Zygmund Bauman, “pós-modernidade significa a estimulante liberdade para perseguir qualquer coisa, aliada à assustadora incerteza sobre o que vale à pena perseguir e em nome de quê.” Curioso: para o historiador de religiões Olav Hammer, uma certa “amnésia da fonte” é componente fundador de uma visão de mundo New Age, com seus partidários geralmente adotando idéias sem a mínima consciência sobre como e onde essas idéias surgiram. Para outros acadêmicos ainda, “New Age” funciona muito mais como um guarda-chuva para uma vasta variedade de buscas por espiritualismos, filosofias, práticas e medicinas alternativas, talvez unidas apenas pelo contraponto a algum establishment ocidental. Por isso, o New Age não deixa de ser tão eclético quanto etéreo e difícil de definir, e mais ainda de se emitir opinião sobre. Ele representa, para muitos, uma busca ampla e livre por um mundo estético-psicológico-espiritual mais otimista, holístico e ressonante com a humanidade atual, buscando, para isso, soluções das mais variadas em crenças e universos simbólicos dos mais diversos.
De qualquer forma, o legal da arte é que não importa o quão trágico e kitsch sejam as fundações de um movimento: sempre tem gente produzindo obras de imenso valor artístico porque viram ali alguma verdade pessoal ressoando e falaram disso com grande eloqüência, utilizando linguagens que vão muito além da verbal-conceitual. A musical, por exemplo. Isso, sim, está muito mais de acordo com a mensagem da "nova era" do que o fascínio pela superficialidade de personagens e conceitos mitológicos de antanho.
ENYA: A INUSITADA BASTIÃ DO NEW AGE MUSICAL
É um fato curioso da história européia que, mesmo em plena Idade Média, histórias de cavalaria heróica eram, essencialmente, fantasias utópicas de quem anseia por um mundo melhor sem saber como. Em “O Outono Da Idade Média”, o celebrado historiador Johan Huizinga destrincha esse assunto e mostra que o homem medieval não era tão menos escapista e idealista do que nós somos hoje: as histórias de cavalaria expressavam os ideais de moral e costumes de uma terra de fantasias, muito mais do que relatavam eventos coerentes e realistas da época. Não diferente, O Senhor Dos Anéis fala sobre o massacrante industrialismo bélico europeu e a sede por poder na época da Primeira Guerra Mundial, muito mais do que sobre um mundo histórico medieval – ou celta, inclusive. Talvez o que haja de mais realista no sentido de registro histórico dentro da obra de Tolkien seja o cuidado com a simbologia mitológica do norte da Europa (vale lembrar que, apesar de católico, Tolkien trabalhava muito bem com os "denominadores comuns" das mitologias, as verdades que são constantes por trás do pluralismo de narrativas e conjunturas de cada tradição). Montados em cima da estrutura mítica da Jornada Do Herói (a jornada interior de auto-conhecimento e auto-atualização que dá origem aos ritos de passagem para a vida adulta), não foi por acaso que os livros e filmes d’O Senhor Dos Anéis acabaram associando a retórica anti-industrialista e a estética bucólica a um certo anseio por uma felicidade mais genuína e um retorno árcade-romântico a uma natureza benevolente – um sentimento que andava meio expatriado desde que “ser contra o sistema” tinha saído de moda.
Outrossim, graças à utilização de motivos mitológicos pagãos (“pagão” sendo um termo genérico cunhado no Império Romano para designar não-cristãos), obras como O Senhor Dos Anéis também oferecem, para os que assim se predispõem a interpretar, um passeio por possibilidades espirituais mais conectadas à natureza e desprendidas de instituições ocidentais arcaicas e minadas por hipocrisias políticas.
Pois. Muitas pessoas cresceram (e até hoje crescem) maravilhadas com as obras do mestre Tolkien – e, sendo ele o artista que foi, suas histórias estão fadadas a atingir cada nova geração e cada nova pessoa de um jeito único e inédito, trazendo à tona novos conflitos, sentimentos e motivações que guardamos sem mesmo perceber. Uma dessas pessoas, entre tantas, foi uma certa cantora irlandesa batizada de Eithne Pádraigín Ní Bhraonáin, que ficou mais conhecida pela grafia anglicana de seu primeiro nome: Enya. Ela mesma não tinha pretensão alguma de se inserir nesse estilo musical que hoje conhecemos como New Age. Sua primeira banda, o Clannad, era muito mais uma iteração da música irlandesa temperada pelos sintetizadores que eram moda e permearam tantas outras bandas dos anos 80 – abundam exemplos de conjuntos de folk, rock e trad que experimentaram com eles também: Jethro Tull foi uma, e outra, menos conhecida, é o Wolfstone. Por ocasião da sua separação do Clannad, Enya pôs-se a experimentar mais ainda com sua voz e sintetizadores, em busca de um som que lhe agradasse, e sem tentar se encaixar na caixinha do celta, New Age, folk, trad, ou qualquer outra. Se ela fez referência à sua cultura materna, foi mais ou menos como Led Zeppelin falando da cultura nórdica em Immigrant Song, apesar da música deles estar muito mais para o blues/rock do que para o folk escandinavo. Em bom português: ela fez o som que queria fazer. Não é de se surpreender que fez sucesso: não só a música dela é extremamente genuína, embebida em verdade e criada de coração, como ela também se associou a um produtor musical que soube muito bem posicionar esse trabalho no mercado da indústria fonográfica.
E como ela foi dessas experimentações despretensiosas até a trilha sonora de O Senhor Dos Anéis, tornando-se, no caminho, ícone e referência num movimento que não havia sido fundado por ela e tampouco pela cultura celta?
Quando eu trabalhava com filmagem de documentários de natureza, circulava uma anedota engraçada sobre o filme “A Marcha Dos Pinguins” (aquele documentário francês de longa metragem que mostrava a vida dos pinguins imperadores no inverno antártico). Ouvi de um conhecido de um dos produtores do filme, Emmanuel Priou, que o longa foi muito elogiado tanto pelo público progressista quanto pelo conservador e por motivos ironicamente opostos: este enxergava o elogio à estrutura familiar monogâmica dos pinguins, composta de pai mãe e prole, servindo de modelo para a “família tradicional” humana; já aquele ressaltava o fato de que os pinguins machos e fêmeas se encarregavam dos cuidados familiares em igual medida, quebrando modelos patriarcais de sociedade. Na verdade, os produtores do filme não tiveram a intenção de passar nenhuma dessas mensagens – e os pinguins imperadores, menos ainda. Mas o público viu o que queria ver, e essa obra de arte cumpriu muito bem o seu papel de ressoar as verdades pessoais de cada um.
O fato é que a Enya caiu nas graças de quem buscava ainda um refúgio bucólico mais romântico com muita paz, amor e meditação, aliado a uma alternativa espiritual mais síncrona com os tempos atuais. E talvez ela seja o que há de mais verdadeiramente irlandês no que diz respeito ao New Age enquanto gênero musical. Gênero, esse, que está para música celta assim como queijo está para leite: apesar de existir uma relação de apropriação de um tipo de leite para produção de um derivado, em última análise não é possível fazer um misto quente com leite e presunto, e tampouco um bom achocolatado misturando Nescau no queijo. Ainda que derivado, o New Age é seu próprio estilo, que funciona em seus próprios termos e para o seu próprio público. Celta mesmo ele não é, senão pelas origens culturais de alguns expoentes que trouxeram suas influências e as ressignificaram numa outra lógica musical.
ENTÃO NEW AGE NÃO É MÚSICA CELTA?
Não.
Na verdade, o New Age musical é, antes ainda do encontro com a música celta, um desenvolvimento da música experimental, vanguardista e ambiente que era produzida nas décadas de 60 e 70. Artistas como Brian Eno, por exemplo – este ficou especialmente conhecido por seu álbum “Music For Airports”, que foi concebido para ser tocado como música de fundo em aeroportos, mas acabou reverenciado como um clássico cult da música ambiente. Sendo caracteristicamente contemplativo, calmo e relaxante, esse tipo de música caiu, também, no gosto do movimento New Age, que o adotou e incorporou em seus universos. Uma vez em suas mãos, essa música começou a abarcar uma salada de influências e instrumentalizações étnicas que variam das flautas nativas-americanas aos didjeridoos australianos, cantos espiritualistas, tambores xamânicos, cítaras, tin whistles e harpas. Talvez venha daí, inclusive, a confusão que se faz hoje entre o que é “música celta” e “música irlandesa” no meio de tantas outras tradições musicais étnicas do mundo. Mas isso, minhas amigas e meus amigos, é assunto para outro artigo.
E qual seria, de fato, o som da música que era tocada pelos povos celtas da antiguidade? Ninguém sabe, pois os celtas não se incomodaram de deixar registros. A música irlandesa que conhecemos, na verdade, também vem da década de 60, e também de um outro tipo de "contra-cultura". Contra a cultura britânica/protestante, reafirmando a cultura dos irlandeses e sua orgulhosa identidade nacional! Esse, sim, genuinamente irlandês, é um gênero vivo tanto quanto o jazz, por exemplo. Fica, ao fim deste artigo, uma amostra do que chamamos "música irlandesa tradicional" (recomendo abrir a playlist no próprio Spotify, pois essa plataforma não consegue abarcar toda a sua extensão):
Leia AQUI a segunda parte desta série.
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