O primeiro contato que tive com a música irlandesa foi graças ao saudoso eMule, um antigo software de download peer-to-peer – precursor do que hoje conhecemos como torrents. Não querendo fazer o elogio da pirataria num artigo que pretende promover o trabalho artístico de uma banda, há que se faça o esclarecimento que, naquele tempo, era muito difícil achar discos de música irlandesa em lojas brasileiras – ainda mais quando a gente não sabia que estava procurando música irlandesa. O que eu procurei no eMule foi “música celta”, aquele guarda-chuva genérico criado pela indústria fonográfica e que, no imaginário popular (bem como nos resultados de busca do eMule) pode abarcar desde Chieftains até Enya. E Mozart, também, por algum motivo, aparecia muito nessas buscas. O primeiro arquivo que eu baixei, mesmo, tinha o nome “celtic irish reels by mozart.mp3”. E me encantou tanto aquela música, que de clássica não tinha absolutamente nada, que me inspirou a continuar a me aprofundar nesse universo até parar aqui, escrevendo para O Pint Diário. E nessa jornada conheci muitas bandas e muitas gravações incríveis que saí recomendando para todos que se dispusessem a ouvir – mas demorei muitos anos para descobrir que gravação era aquela primeira, que era de uma versão ao vivo e tão mal gravada por algum dispositivo amador que até o Shazam se confundia. Anos depois, entretanto, eu finalmente descobri qual era aquela banda que tinha me fisgado e aberto as portas do universo Irish: chama-se Altan, e a música em questão era uma versão ao vivo da primeira faixa do seu segundo álbum, composta pelas reels Yellow Tinker, Lady Montgomery e The Marry Harriers.
Hoje considerados um bom exemplo de “música tradicional”, o Altan bebeu da fonte de bandas que, em toda a sua originalidade, fundaram o nosso parâmetro de “tradicional” sem a mínima intenção de fazê-lo. Quer dizer, inspiraram-se no som de Planxty, The Bothy Band, De Dannan. E surgiu o Altan da diversão quase mágica de se reunir com outros músicos para tocar ao redor de mesas de pub e cozinhas de Donegal, no norte da República da Irlanda. A banda foi criada em 1987 pelo casal de músicos Frankie Kennedy (Irish flute) e Mairéad Ní Mhaonaigh (fiddle / voz), que já vinham performando juntos de anos anteriores. Chavama a atenção, veja só, a conversa de uma fiddler de Donegal com um flautista do Norte. A partir de 87, entretanto, foi quando o Altan se concretizou como banda com a adição de Ciarán Curran no bouzouki e Mark Kelly no violão – este último, em especial, reverberando o interesse já presente da banda em trazer para a “música tradicional” uma porção de influências de outros estilos. Não diferente como foi, por exemplo, com o Planxty, na geração anterior. Não diferente do que é hoje com bandas como Flook. O que muda, me parece, é apenas a definição do que chamamos “tradicional” e o que percebemos como “influências externas”.
Desse final da década de 80 em diante, o Altan envolveu-se cada vez mais em turnês fora da Irlanda, ganhando ampla projeção internacional, inclusive pelos Estados Unidos – e essas, diz a banda, foram particularmente influentes no seu som. Foram também colecionando prêmios para seus álbuns e em 1996 eles foram a primeira banda irlandesa deste tipo a assinar um contrato de gravação com a Virgin Records.
O som da Altan oscila entre números instrumentais entusiasmados e canções lindíssimas lideradas pelas voz doce de Mairéad Ní Mhaonaigh. Além dela, a banda atualmente conta com Ciarán Curran no bouzouki, Dáithí Sproule e Mark Kelly no violão e Martin Tourish no acordeão. Infelizmente, o flautista e fundador Frankie Kennedy faleceu em 1994, vítima de câncer – e insistiu em continuar tocando e acompanhando as turnês enquanto pôde. Uma perda que abalou consideravelmente a banda, mas não a ponto de desmontar o projeto edificado por Kennedy e Mhaonaigh.
O Altan continua a tocar ao vivo dentro e fora da Irlanda, e recentemente lançou um livro de tunes (chamado The Tunes) temperado com pensamentos e histórias sobre a música que tocam e suas origens diversas. Nas palavras de Mairéad Ní Mhaonaigh, “tocamos músicas que vieram de pessoas que nós amamos e respeitamos, e que temos orgulho de conhecer como amigas. Como é parte do ciclo da vida, muitos desses músicos maravilhosos não estão mais entre nós, mas a música, as memórias e as histórias deles perduram. O legado deles é o que está contido nesse livro, e, acima de tudo, tentamos transmitir a humanidade deles em cada nota.”
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