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Crônicas de Session: "O Approach Jane Goodall"

Atualizado: 23 de abr. de 2023


O céu da cidade de Galway estava particularmente limpo durante todo o sábado, o que significa que a noite foi especialmente gélida. Nem sequer o inverno chegara, mas confesso que eu e meus parceiros de banda ponderamos com um certo cuidado se valeria, de fato, à pena parar de tocar nosso som no conforto quentinho de casa para nos aventurar ladeira abaixo por uma boa meia hora, a pé, até chegar no lendário The Crane – um dos pubs mais celebrados da cena da Irish music, que desde tempos imemoriais hosteia sessions diárias no coração Galwense. Ora, é claro que frio nenhum acabaria se impondo entre nós e aquela session, mas esse momento de hesitação foi o suficiente para que chegássemos alguns bons minutos atrasados. Em tempos de pós-pandemia-pero-no-mucho, esse atraso infelizmente significou que o pub já estava com a sua lotação máxima e o segurança da porta teve que nos informar, num jeitão admiravelmente seco e pragmático, que até poderíamos esperar na porta, se quiséssemos, mas essa espera poderia ser um tanto longa. Na verdade, por mais decepcionante que fosse essa barreira momentaneamente intransponível, a conversa estava boa e a caminhada até lá nos havia aquecido consideravelmente os corpos – de forma que lá, fora do The Crane, nos prostramos como três paulistanos bastante acostumados com longas filas de espera para entrar em um estabelecimento almejado.



Éramos uma violonista, um bandolinista e eu, flautista. E havíamos todos considerado, é bem verdade, trazer nossos instrumentos, pensando na (admitidamente longínqua) possibilidade de tocarmos junto à session. Mas a verdade é que essa seria uma das primeiras sessions que presenciaríamos na Ilha Esmeralda, e isso era bastante intimidador por si só. Outrossim, o The Crane é um pub que hosteia sessions bastante avançadas e que dificilmente careceriam de mais dois melódicos e um harmônico – tudo isso contribuindo para diminuir as chances de que a viagem com instrumentos nas costas realmente valesse à pena. Finalmente, a parcimônia imposta pelo frio e pela distância configurou-se o argumento derradeiro, e no fim o único instrumento que nos acompanhou foi a minha pequena whistle de cobre – um instrumento particularmente dado a andanças e aventuras inesperadas, e que até por isso há alguns dias já havia demandado um lar no bolso interno do meu casaco, e lá morava já pela força do hábito. É divertido referir-se aos instrumentos e à música como uma entidade à parte, mas é de fato essa dimensão quasi-mágica que nos faz atraídos por uma session em plena noite gelada e abandonar os nossos chocolates quentes para, enfim, esperarmos encostados na porta de um pub em que nunca estivemos por um chamado que poderia, ou não, vir a qualquer momento. Mais incomodado do que nós com essa situação, na verdade, estava o segurança da porta do Crane.


“Sabe, se vocês querem sair num sábado à noite, têm que se organizar para sair mais cedo! Se não, não vão conseguir entrar em lugar nenhum.” – nos disse o segurança, num tom de represália que denunciava o quão surpreso e compadecido ele estava desses três jovens que simplesmente se dispuseram, com muita naturalidade, a esperar a sua chance para entrar e ver a session. Claramente, ele nunca havia se deparado com nada semelhante às filas de balada da rua Augusta.


“Pois é, tem razão… ficamos entretidos tocando nossos instrumentos em casa e esquecemos da hora” – respondemos, tentando dar-lhe algo palpável e compreensível para que se conformasse. Mas, ao ouvir isso, algo acendeu dentro daquele senhor, que era concomitantemente sério e doce.


“Vocês tocam? Estão com os instrumentos aí? Porque se estiverem, eu consigo colocá-los para dentro” – ao que algo imediatamente acendeu dentro de nós também. Não obstante, o sotaque irlandês oferece, até para os ouvidos mais curados, uma divertida paleta de desafios – ainda mais quando proferido por um senhor que aparentava portar muitas histórias de terras longínquas e tempos que eram muito diferentes dos de hoje. Do meu lado, meu sotaque forjado na isolada Terra Da Longa Nuvem Branca (também apelidada por aí de Nova Zelândia) parece que ofereceu seus próprios empecilhos ao segurança, que não entendeu muito bem quando eu lhe respondi que apenas eu estava com uma whistle no bolso do casaco. Apenas o “não” ficou suficientemente claro para ele.

“Vocês moram longe daqui? Ainda temos algumas horas até o pub fechar. Se voltarem para casa e trouxerem seus instrumentos eu deixo vocês entrar. Temos duas mesas de session.” – ficou a dúvida se isso significava estender a mesa da session já existente ou criar uma nova session no andar de baixo para que hosteássemos nós mesmos (uma vez que o The Crane tem dois andares com a acústica bastante isolada e costuma inclusive empregar os dois para atrações musicais diferentes simultâneas). O fato é que a coragem nos faltou de refazer o caminho de volta para casa, ladeira acima, para buscar um bandolim e um violão e tornar a voltar para a cidade. Naturalmente, brasileiros que somos, fomos incapazes de dizer essa verdade tão crua para o segurança, e preferimos apostar numa reação mais acolchoada e tão essencialmente latina na sua falta de articulação verbal que ele continuou nos indagando com aqueles olhos penetrantes por ainda alguns instantes desconfortáveis, sem entender a nossa trágica falta de objetividade em responder a sua pergunta. Apostando na hipótese de que talvez não tivéssemos entendido a sua proposta, ele a repetiu com outras palavras igualmente difíceis de decifrar. E eu tornei a responder que só eu tinha trazido uma tin whistle, abrindo o meu casaco e mostrando o seu cobre reluzente na tentativa de me fazer mais claro.


“Ah, você tem uma whistle? Ótimo, então, te coloco na mesa da session!”


“Ah… uau… mas e os meus amigos, que não estão com instrumentos?”


“Eles entram também.” – disse o segurança já nos puxando para dentro, escada acima, e nos empurrando para dentro do cômodo principal, onde muitas pessoas bebiam, conversavam e, acima de tudo, regozijavam-se ao som de uma session como eu apenas havia visto em vídeos de YouTube até então. Eram 9 ou 10 músicos com um nível de técnica e prática com a música tradicional irlandesa que cortavam de um lado pela excelência do som e do outro pela intimidação a qualquer um que pensasse em se juntar. Daquelas sessions que nos faz, involuntariamente, pensar, “será que é aberta ou será que esses caras ensaiaram isso e já têm um número pronto e hermético para apresentar?”


A resposta para essa pergunta, na verdade, veio antes que eu sequer pudesse formulá-la na minha cabeça confusa e acelerada: o segurança da porta dirigiu-se ao host da session, que estava do outro lado do salão, fazendo um gesto de “tin whistle” com as mãos, ao que aquele respondeu com um dedão erguido para cima. E com isso fui instruído a tomar um lugar à mesa, junto com os músicos.



Levei o tempo de um set de três tunes para que a minha mente se apressasse em chegar no mesmo lugar em que o meu corpo já se encontrava e, enfim, decidir pedir um pint de Guinness (a melhor Guinness de Galway, dizem) para acalmar os nervos e ir me aclimatando nessa realidade fantástica. Mas aquelas tunes eram muito bem tocadas, e muito rápidas e eu não conhecia nenhuma – e nem aquele pint foi o suficiente para resolver esse problema inicial. Mas, por outro lado, ele me trouxe a lembrança de algo que aprendi em uma outra session, quando morei em Dunedin, na Nova Zelândia. Foi Mike Moroney, host daquela session, que me falou do que ele chamou de “the Jane Goodall Approach”.


Jane Goodall é uma célebre antropóloga que ficou muito famosa por seus estudos convivendo com grupos de gorilas, revelando suas complexas e minuciosas estruturas sociais – estruturas em que a Dra. Goodall teve que se infiltrar, de alguma forma, para conseguir os dados fantásticos que publicou. Moroney, pois, falava que ao chegar pela primeira vez em qualquer session desconhecida, vale comportar-se como ela fazia: manter uma distância segura, comunicando fisicamente o respeito por aquele espaço e aquelas pessoas, e, com muito jeito, demonstrar interesse em participar com elas. Aproximar-se com cautela, sensibilidade, e, ele brincava, sem fazer movimentos bruscos, para não lhes dar a idéia errada sobre suas intenções. Pois aproveitei o silêncio entre um set e outro para achar um banquinho que orbitava a mesa da session a uma distância maior, e perguntar se poderia me juntar. Um flautista me respondeu que era uma session “razoavelmente” aberta, então provavelmente não haveria problema, mas com a ressalva de que ele não tinha a autoridade do host. Quisera eu repetir a pergunta para o host, mas este encontrava-se do outro lado da mesa, e o barulho do pub impossibilitava sequer aviltar essa possibilidade. Nesse momento, um fiddler de feições simpáticas propôs um slip jig que, enfim, me era conhecido, chamado Farewell To Whalley Range. E aproveitei o ensejo para acompanhá-lo na melodia, atraindo os primeiros olhares na minha direção. Quem mais esbanjou entusiasmo com a aparição da minha whistle de cobre foi, porém, um casal de turistas americanos que estavam sentados muito mais próximos dos músicos do que eu mesmo. A ponto de que o rapaz do casal levantou-se, veio até mim, e naquele tom orgulhoso e deslumbrado que é notável na maioria dos turistas americanos, insistiu que eu sentasse na mesa com ele, para que assim ficasse mais próximo da session – de ombros encostados nos outros músicos, na verdade. Muito educadamente, tive que explicar que eu também era novo naquele pub e estava indo com calma ali. Ele pareceu decepcionado por não ter a oportunidade de contar para seus amigos em casa que “um dos músicos sentou na minha mesa e colocou a flauta do lado do meu pint!”


Ainda nesse momento, eu insistia em voltar no mesmo pensamento: será que esse “esquema da whistle” não havia sido apenas uma “malandragem” do segurança compadecido para nos ajudar a entrar? Será que eu não estava sendo precipitado em assumir que isso significava realmente poder sentar e tocar com os músicos? Perguntas que me fizeram companhia ainda pelas próximas duas ou três tunes que eu consegui acompanhar, cada vez com mais confiança no fôlego. Finalmente, a resposta veio: Michael Chang, o fiddler que hosteava aquela session, levantou-se após um determinado set e, passando pelo banquinho onde eu estava aprumado, dirigiu-me a palavra, perguntando se eu aceitaria um pint – explicando, em seguida, que estava indo até o bar pegar uma rodada para “os músicos”.





E assim eu entendi que havia sido “aceito no bando”, com esse presente que foi mais um pint de Guinness: eu era "um dos músicos"! Mas ora pois. Como superestimamos a importância da linguagem verbal, não é? Não foi um inglês estranho e nem a dissonância de culturas faladas que nos impediu de entrar no The Crane naquela noite – e tampouco foi a quase completa falta de possibilidade de interação falada na session que se impôs entre a minha whistle de cobre e mais uma aventura inesperada que ela agora vai ter para contar em futuras sessions que acompanhe. O “Jane Goodall Approach” nada mais é do que uma série de procedimentos não-verbais que, operando nos denominadores comuns da linguagem corporal, facilita a aproximação de primatas das culturas mais distantes e promove entre eles a identificação e o respeito. Irlandês, brasileiro, neozelandês, gorila – não são esses apenas rótulos glorificados em torno de uma específica gramática da fala que não é sequer a nossa única e mais antiga forma de traduzir e transmitir informação, criar empatia e, enfim, nos unir em torno de algo comum? E outra: não é essa, meus amigos, a natureza da música? Essa música que chamamos de irlandesa é dificilmente “celta” porque os povos que hoje chamamos de “celtas” estavam muito mais preocupados com tocar a música do que com registrá-la e falar sobre ela. Não sabemos o que era a “música celta” dos antigos. Sabemos apenas o que é a música “irlandesa” que tocamos hoje, e ela é, com efeito, uma língua-franca que permite que símios de todas as origens verbais conversem e se aproximem em torno de algo que, na mais pura verdade, dispensa um nome.




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