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Flook: Sobre Dizer Algo Novo

Atualizado: 23 de abr. de 2023



Em 2019, o ano antes da Peste, a cena Irish brasileira estava lindamente aquecida, com sessions novas pipocando em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba… muitos shows foram tocados Brasil afora, e grupos de whatsapp foram criados, e músicos viajaram para cá e para lá em busca de mais tunes e mais parceiros para compartilhá-las. Foi nesse contexto que um certo álbum foi lançado que gerou um fenômeno que eu nunca imaginei que veria na vida: uma febre de instrumentistas tirando uma mesma tune, tanto pela beleza inigualável da composição quanto pelo simples prazer do sentimento de pertencimento a essa hype tão singular e inusitada. Mesmo quem não tocava, na época, talvez se lembre de como de repente gravações caseiras da reel Coral Castle começaram a ser compartilhadas entre músicos amadores e profissionais. Refiro-me, com efeito, à terceira faixa do álbum Ancora, o mais recente e mais deslumbrante lançamento da banda Flook. Flook, esse, que não obstante a conquista quase pokemônica de corações Irish-brasileiros com seu quarto álbum de estúdio, já estabelecia-se muitos e muitos anos antes com sua sonoridade inovadora, de uma poeticidade e virtuosismo dignos da colaboração de seus quatro membros: Brian Finnegan, Sarah Allen, John Joe Kelly e Ed Boyd.



Tudo começou em Novembro de 1995, como uma diversão de três jovens flautistas que se aparceiraram em torno de um projeto bastante inovador – uma idéia de uma amiga em comum chamada Becky Morris, que batizou o grupo de “3 Nations Flutes”, supostamente representando Inglaterra, Escócia e Irlanda. Eram Brian Finnegan, irlandês, Sarah Allen, inglesa e Michael McGoldrick… irlandês. O problema do nome original transparece de imediato: ninguém aí é escocês. Brian Finnegan conta a anedota de que o nome da banda foi mudado quando constataram que nem a imitação de sotaque escocês de McGoldrick era o suficiente para sustentar o nome original. Por outro lado, seus dotes fláuticos faziam maravilhas para sustentar o trio de sopros: ele havia acabado de ganhar o “BBC Young Musician Of The Year”, um dos prêmios mais prestigiosos para músicos da cena trad. Isso significou que o Fluke – que logo renomeou-se novamente para Flook – teve bastante visibilidade em seus primeiros anos. Ao lado de Brian Finnegan, tinha-se aí uma dupla muito entusiasmada com uma predileção por improvisos – uma marca que a banda carrega até hoje. Sarah Allen, por sua vez, trazia um “algo a mais” para essa parceria: ela já tocava em outras bandas icônicas da época, e, apesar do gosto pelo folk, foi se aproximar da música tradicional irlandesa por causa do Flook. Ainda que as influências musicais de toda a banda variem bastante (do pop ao jazz e da música árabe à indiana), Finnegan e McGoldrick cresceram no universo da música irlandesa – já Allen vêm de um treinamento clássico e desenvolveu-se em outras vertentes musicais ao longo da vida, também nutrindo sua própria busca por estilos improvisacionais, e diz que nem sequer finge saber tocar trad. O que só acrescenta à mistura eclética que faz esse som tão inexplicavelmente belo, tradicional e moderno ao mesmo tempo. Ela toca flauta Boehm (a clássica flauta prateada com chaves), em vez das flautas de madeira irlandesas, e parece ter uma predileção pela flauta alto – afinada em sol, com um timbre um pouco mais grave do que as flautas mais comuns, favorecendo assim uma separação sonora dos seus parceiros flautistas. Talvez por causa dessa origem “de fora”, ela é capaz de destilar algo de especial e único das tunes – De qualquer forma, em entrevista para a RTE, Brian Finnegan diz que Sarah Allen tem uma habilidade única de tocar as tunes junto com ele mas em outro “espaço” – “ela aprendia a tune e depois deixava a tune quieta, para achar o espaço por debaixo dela”. Prestar atenção nesse subtexto ímpar que ela cria é, no mínimo, uma experiência bem singular na apreciação da Irish music:



O leitor atento haverá de ter notado que esse vídeo, já muito mais recente, carece de McGoldrick na terceira flauta e já conta com as participações de John Joe Kelly (bodhrán) e Ed Boyd (violão). Pois bem: fique conosco, estimado leitor, e não perca o resto da história deste grupo fantástico.


As primeiras apresentações do Flook, conta-se, foram sucesso de público e crítica, mas um tanto pesadas para o grupo de três melódicos. Sentindo que não seriam capazes de sustentar muitas gigs sem um violão, eles chamaram Ed Boyd para acompanhá-los, e este é membro da banda desde então. O primeiro álbum da banda, um compilado de gravações ao vivo chamado "Flook! Live!", é o único registro que consegui achar dessa formação inicial, incluindo Michael McGoldrick, e antes da entrada de John Joe Kelly. Fica aí uma pequena amostra desse desbunde fláutico:



Deu-se que McGoldrick decidiu deixar o grupo para perseguir outros projetos, como o Capercaillie – e, apesar da falta que fez para os parceiros, Finnegan admite que foi aí que o Flook finalmente consagrou-se a banda que conhecemos hoje. Foi nesse momento que as flautas ocuparam uma posição um pouco menos desproporcional na banda, e Ed Boyd e John Joe Kelly (que entrou em 1998/1999, de certa forma substituindo McGoldrick) ganharam mais destaque – disso fez-se a mistura ideal que conhecemos. Kelly chama atenção pela exploração melódica que faz do bodhrán: ele é capaz de extrair uma porção de tons e timbres diferentes de um instrumento que, pelo menos a princípio, é percussivo – sem, claro, deixar de marcar um ritmo perfeito, “sólido como uma rocha”, nas palavras de Brian Finnegan.




Eu mencionei que a Sarah Allen também toca acordeão? Bom, ela não se considera uma acordeonista “de verdade”, mas fica aí mais uma informação para derrubar nossos pobres queixos alguns centímetros a mais.


Três magníficos álbuns depois, o Flook era sensação internacional, viajando o mundo turnê após turnê. O sonho de todo músico, certo? Bom, sim, mas as coisas também não são simples assim. Brian Finnegan conta de um certo porém advindo de um envolvimento tão intenso assim com uma banda: não te chamam para mais nada, pois sabem que você não está disponível. A diversidade de experiências musicais lhe fazia cada vez mais falta. Ainda assim, um quarto álbum de estúdio estaria sendo preparado pelo grupo – mas aí também encontraram barreiras criativas. Estava muito claro para a banda que, se um novo álbum fosse gravado, ele não poderia simplesmente repetir a fórmula dos últimos. Deveria ser algo inovador. E nada que considerassem inovador o suficiente lhes acometia a criatividade. Deu-se, ainda, bem nessa época, o nascimento do filha de Sarah Allen, em 2007. Postas todas essas vírgulas neste momento, o Flook desfez-se por tempo indeterminado em 2008.


Nessa época foi que Brian Finnegan investiu em projetos como KAN e seu segundo álbum solo, The Ravishing Genius Of Bones – sim, segundo! O primeiro chama-se When The Party's Over, gravado principalmente com uma Irish flute de bambu, e infelizmente não se acha em lugar nenhum para ouvir. Minto, alguém no YouTube fez o favor de profaná-lo convertendo-o para A=432 (leia mais sobre esse “terraplanismo musical” no meu artigo sobre New Age). John Joe Kelly foi aventurar-se a tocar com McGoldrick, Paul Brady e um mestre de tabla indiana chamado Zakir Hussein. Sabe-se que, também durante esse hiato, Ed Boyd passou a integrar o Lúnasa, onde ele também toca violão desde 2012 até hoje.


(a tune “Nightride To Armagh” é composição de Brian Finnegan)


Os membros do Flook continuaram encontrando-se como amigos, grandes parceiros que eram de longa data. O som da banda, sem dúvida, transparece esse tipo de sintonia única entre mentes que, quando se encontram, produzem música com a facilidade e leveza de quem troca uma idéia ao redor duma mesa de bar, empunhando o merecido pint diário. É uma música que viaja para além das fronteiras da música tradicional irlandesa, ainda que se atendo quase que exclusivamente a uma instrumentação tradicional. Chama a atenção a qualidade inefável de instrumentos que se fundem num produto que é definitivamente maior do que a soma das suas partes. O repertório da banda é repleto de tunes autorais, e outras tantas desenterradas sabe-se lá de onde, que nos fazem repensar tudo o que conhecemos sobre Irish trad e ver esse gênero com novos olhos e por ângulos novos. A curadoria é feita principalmente por um Brian Finnegan que busca sempre algo diferente em CDs e fitas cassete que encontra por aí. É ele também quem compõe boa parte do repertório autoral, ao lado de Allen – às vezes juntos. Aliás, é uma anedota que já andei contando por aqui: uma vez Finnegan admitiu que às vezes traz tunes de sua autoria para a banda e é confrontado por uma Sarah Allen que pergunta, sem papas na língua: “onde é o tempo 1 disso?”. Os dois, curiosamente, têm formas bastante distintas (dir-se-ia opostas) de pensar música: Allen, de formação clássica, tem uma cabeça mais teórica (usando mais a teoria musical ocidental convencional), enquanto Finnegan, segundo ela “não pensa em termos de compassos. Ele sente o jogo e a levada naturais da tune e bate o pé de acordo com isso, muitas vezes de forma irregular.” Tunes novas para a banda, segundo Allen, costumam ser ensaiadas entre passagens de som e shows – não, eles não costumam fazer ensaios propriamente ditos. Por vezes, quando uma tune nova é composta ou descoberta, ela é sorrateiramente “infiltrada” na passagem de som por Allen e Finnegan, que então buscam a aprovação (ou não) de Boyd e Kelly – se a banda inteira estiver de acordo, a tune é passada algumas vezes até ficar macia o suficiente para integrar o repertório. Em uma entrevista de 2006, ela confirmou que, em 9 anos, a banda só deve ter tido uns 4 ensaios! O motivo: não é prático, já que ela mora em Londres, Brian Finnegan mora em Armagh (Irlanda do Norte), Ed Boyd mora em Bath (Inglaterra) e John Joe Kelly vive entre Manchester (Inglaterra) e Ennis (Irlanda).




Finalmente, em 2019 a banda quebrou o silêncio com Ancora – seu quarto álbum, que apesar de reter claramente a identidade sonora do mesmo Flook que sempre amamos, é sem sombra de dúvidas o mais inovador, mais maduro e mais deslumbrante produto que o grupo já teve a audácia de lançar. Essa foi, inclusive, a condição que eles mesmos se colocaram para que voltassem aos estúdios: que tivessem algo de novo a dizer. Pois algo de novo disseram. Eles escrevem em seu site oficial que um dos motivos que os levou a se reunirem foi a constatação de que ainda tinham muito a dizer juntos. O álbum é especialmente salpicado de tunes autorais. Torquoise Girl foi escrita por Sarah Allen para sua filha; Ocean Child é composição de Brian Finnegan, em homenagem a um amigo da banda que frequente os leva ao Japão; Jig For Simon é de autoria conjunta dos dois, e já vinha sendo tocada em shows Flooquicos tempos antes da gravação do Ancora; Ellie Goes West é de Finnegan; retomando o set que mencionei no primeiro parágrafo deste singelo artigo, Companion Star é de Sarah Allen e Coral Castle é de Finnegan em parceria com a mandolinista americana Ashley Broder (que também compôs “Two Trees”, que aparece em seu novo álbum solo, “Hunger Of The Skin”).



O novo álbum difere, ainda, dos anteriores, pelo fato de ser muito mais inédito – isto é, por não ter sido extensivamente testado e trabalhado ao longo de turnês, como foi o caso dos álbuns anteriores. Foi uma pena, então, que bem quando estavam começando a viajar o mundo para promover o Ancora, um certo coronavírus forçou todos nós a nos recolhermos para os nossos aposentos e lá aguardarmos até… bom, não sei até quando isso ainda dura. Ainda assim, durante a Pandemia, a banda lançou um par de clipes quarentênicos belíssimos, provando que, apesar de tudo, continuavam pensando na sua legião de fãs saudosos. Inclusive, um deles envolveu a participação de dezenas de vídeos enviados por esses fãs, que a banda pediu abertamente em um post de Facebook:



No final de 2021 e agora, em 2022, o Flook finalmente voltou a programar seus tão aguardados shows. Meu palpite é que nós ainda não ouvimos a última tune tune tocada por esse quarteto fantástico.


Deixo aqui um breve documentário que achei enquanto revirava a internet em busca de informações sobre o Flook – uma breve entrevista com os membros da banda falando justamente desde período de retomada.






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