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Karate Irlandês parte III: Hurdy Gurdy

Crise Global do Custo de Vida. O habituado surfista de internet talvez já tenha encontrado esse termo mencionado aqui e ali. É marca das gerações mais novas a ampla e inexorável intangibilidade do sonho de se possuir um imóvel – e, cada vez mais, de sequer alugar-se um por inteiro. Alguns jovens pelo mundo já começam a torcer por uma iminente quebra do mercado imobiliário – não porque têm desejos masoquistas de falência, mas porque esta agora parece ser a melhor e mais realista possibilidade de eventualmente poderem ter uma casa para chamar de sua, ou pelo menos alugar um apartamentinho pequeno sem precisar dividi-lo com outras 5 pessoas. Não querendo desmerecer os esforços que certos capitães exonerados tanto fizeram para provocar um dos maiores êxodos de cérebros da história do Brasil, é este o contexto que causa muitos de nós (inclusive este que vos escreve) a tentar a vida em países cuja economia ainda não foi (tão) afetada. Ainda assim, a Irlanda também não é uma disneylândia econômica. Sim, o salário mínimo daqui de fato dá conta de (minimamente, como o nome sugere) sustentar alguma qualidade de vida – e sim, aqui tem trabalho (bem remunerado e bem valorizado) pra quem quiser! O que não tem pra quem quiser é onde dormir. Galway é uma cidade horizontal, com pouquíssimos prédios, e nada mais alto do que 3 ou 4 andares. É uma cidade pequena, talvez pouco maior do que o bairro do Tatuapé, em São Paulo. E é uma cidade apaixonante, artística, universitária, fervilhando de shows, sessions, exposições, eventos culturais – e cercada de natureza e ruínas medievais. Não é de se surpreender que a idéia de viver aqui tenha dado tanto ibope nos últimos tempos. E o dilema é sempre o mesmo: não tem casa pra quem quer. A gente tem o dinheiro, só não tem quem queira aceitá-lo. Em cima disso, um certo neandertal carinhosamente apelidado de Vladimir Putin teve a brilhante sacada de bombardear cruelmente a Ucrânia desde o ano passado, levando milhares e milhares de ucranianos a buscarem refúgio em países mais tranquilos – como a Irlanda. Assim sendo, eu e minha bela esposa Paula passamos os primeiros 5 meses da nossa nova vida em Galway dormindo de favor na casa de amigos, buscando incessantemente um landlord (proprietário de imóveis) que tivesse a bondade de nos aceitar como inquilinos. E finalmente conseguimos, num belo dia em que a Paula fez um teste para trabalhar como barmaid num pub local que frequentamos nas sessions das quartas feiras de noite. Nesse dia ela conheceu o dono do pub. Que também é dono dos apartamentos que ficam em cima do pub. E que nos ofereceu um quarto por 1000 euros por mês – uma obscenidade desmedida, de fato, mas bastante razoável em comparação ao que se anda pagando por aqui, e ainda perfeitamente cabível dentro do salário mínimo. Absolutamente irrecusável, portanto, dada a desesperada situação imobiliária do país. O problema é só que eu não recebia um salário mínimo.


Foi neste contexto que se passaram as histórias que narrei na primeira e na segunda parte desta série de.crônicas, que conta das minhas aventuras como aprendiz de luthier em Galway. Trabalhar como luthier traz grandes vantagens: mexer com madeiras lindas, resonates e perfumadas o dia todo, a satisfação pessoal de construir instrumentos, os contatos que se faz com a cena musical, as histórias e experiências que ouvi do mestre Paul Doyle. Para uma criatura hiperativa e profundamente traumatizada por ambientes de escritório, como eu, trabalhar com as minhas mãos, de pé, manipulando objetos tridimensionais, e sendo liderado por uma pessoa com décadas de experiência e prestígio na sua área (quer dizer, que sabia muito bem o que estava fazendo e não apenas fingindo saber para cumprir com os requisitos da posição de chefe), era um desbunde. Mas é de conhecimento comum que a luthieria é um trabalho muito mal pago. Eu não tinha contrato e nenhuma formalização profissional, e isso estava de bom tamanho pra mim até o momento em que o meu salário passou a ser simplesmente a totalidade do meu aluguel. Eu precisava de um plano bastante criativo para continuar neste que era o trabalho mais divertido e recompensador que já tive.


Mas nada temam, amigos, eu tinha um GRANDE plano.


Este plano chamava-se hurdy gurdy.


Um hurdy gurdy do tipo "lute back", do mesmo estilo do que eu construiria, mas com cânones estéticos bem mais tradicionais do que os meus.

Tirando aquele complemento de renda esperto na Shop Street, em Galway.

Se eu tivesse que descrever um hurdy gurdy, eu diria que ele é uma espécie de ornitorrinco musical, uma viola que se toca horizontalmente, usando-se um teclado de madeira para pressionar as cordas (em vez dos dedos) e que substitui o arco por uma roda que se gira com uma manivela. Ele soa, talvez, como o filho de um violoncelo com uma gaita de foles. Eles vêem em vários formatos e tamanhos, e o que eu escolhi chamava-se "squashed back": uma adaptação do "lute back" (um instrumento com fundo de pêra, como os alaúdes), mas aperfeiçoado para a acústica do hurdy gurdy. Ele é composto de 9 "costelas" ou "gomos" de madeira no fundo, um tampo de madeira mais rígida, duas cordas centrais que são tocadas com um teclado de madeira, quatro cordas laterais que servem de drones e ressoam com as frequências produzidas no instrumento, e uma roda, girada por uma manivela, que fricciona as cordas em vez do arco. E eu faria o hurdy gurdy mais bonito e mais ressonante que eu conseguisse. E eu usaria ele para ganhar todo o dinheiro que me faltava, seja em shows ou seja nas ruas de Galway. O busking, como chamamos por aqui, é atividade de se tocar música na rua em troca de gorjetas que os pedestres dão – Galway é uma cidade bastante folclórica pelo alto nível dos seus músicos de rua, bem como pela surpreendente rentabilidade da atividade, e aqui muitos deles se sustentam apenas e tão-somente de busking. Por enquanto, a minha Irish flute estava me ajudando bastante a tirar uma grana extra para pagar minha comida e os meus pints ao longo do mês, mas a flauta é um dos instrumentos mais baixinhos e menos notáveis para se fazer busking – quem costuma viver disso usa gaitas de foles, acordeões, saxofones, instrumentos que chamam a atenção pelo volume e pelo grau de exoticidade. O quão logo eu terminasse meu hurdy gurdy, tão logo eu teria um “aumento” no meu salário.


Nasce um hurdy gurdy: a primeira costela do fundo do instrumento é fixada sobre o molde, que mais tarde será removido. Ao fundo, um outro hurdy gurdy incompleto que eu estava usando como modelo.

Guitarra elétrica feita de sequóia. Usei a mesma prancha para fazer as costelas do hurdy gurdy.

Quando falei para o Paul que eu queria construir um hurdy gurdy, ele não ficou muito impressionado. Trata-se de um dos instrumentos de corda mais difíceis de se construir, mais complexos e cheios de pormenores, mais demorados. De fato, meses se passaram durante essa construção, que eu fazia no meu tempo livre, paralelamente aos outros instrumentos que eu construía. Neste meio tempo eu construí do zero, por exemplo, uma guitarra elétrica, a partir de uma prancha de uma sequóia que o Paul achou caída numa floresta irlandesa, muitos anos atrás. Fiquei tão maravilhado com a textura e a leveza dessa madeira que usei a.mesma prancha para fazer as costelas do hurdy gurdy.


A guitarra foi encomendada por um sujeito bastante excêntrico chamado Cormac Cooke. A cada semana, Cormac aparecia na oficina, perguntando se a sua guitarra estava pronta – e a cada semana, eu gentilmente lembrava-o de que instrumentos feitos sob encomenda demoram para ficar prontos e que não costuma ser uma boa idéia apressar o seu luthier, se você não quiser que ele faça o seu instrumento com pressa e sem tanto capricho. Pois ele tornava a voltar, irredutível, sempre querendo saber quanto tempo demoraria para terminar aquela guitarra.


“Não sei” - dizia Paul, “quando estiver pronta eu te aviso.”


Em boa verdade, mestre Doyle não ia com a cara do sujeito desde o começo. Essa guitarra era ele quem ia construir, mas ele nunca se deu ao trabalho de começar. E quanto mais o cliente desafiava a nossa abundante paciência, mais Paul empilhava novos instrumentos sobre essa encomenda. Eu, compadecido do sr. Cooke, assumi o projeto.


“Esse cara é um louco.” – Paul não tinha papas na língua para falar do cliente. E sim, Cooke tinha um jeito meio próprio, mas ele me parecia simpático e cortês o suficiente. Um pouco estranho no seu jeito de falar, e um pouco sem noção no que diz respeito ao trato com seus luthiers, mas nada disso me pareciam motivos para simplesmente negligenciar este projeto. Ainda mais considerando que Paul vivia reclamando que seu dinheiro estava acabando e precisava de mais trabalhos.


Três costelas fixadas e intercaladas por belos filetes de marchetaria.

De segunda a sábado, eu passava 5 horas do meu dia construindo essa guitarra, e depois mais uma hora fazendo o meu hurdy gurdy. Por vezes, Paul decidia que ia dar uma enrolada básica para me dizer qual seria o próximo passo da guitarra, e eu tinha um ou dois dias só para o meu projeto. A princípio, fiquei um pouco reticente de estar construindo um instrumento para mim no meu horário de trabalho, e recebendo por isso – mas Paul não se importava. Na verdade, ele ficava visivelmente contente quando chegava na oficina e me via trabalhando no hurdy gurdy. Do alto dos seus 70 anos, tendo por muito pouco sobrevivido a 4 AVCs e 2 ataques cardíacos, seus momentos de maior empolgação eram largando qualquer coisa que ele deveria estar fazendo para ficar horas me mostrando projetos, fotos e desenhos de hurdy gurdies. Quando me pegava ficando depois do expediente na oficina para trabalhar no meu instrumento, Paul me falava: “Acho que você não entendeu o nosso acordo. Eu te disse que você poderia construir o seu hurdy gurdy no horário normal, quando quisesse.”


Fixando as últimas costelas. Cada uma me tomava aproximadamente uma hora e meia e passava a noite com a cola secando sob pressão.

E a guitarra, Paul? Ele não queria saber, não tomava conhecimento, e, quando me via trabalhando nela, comentava:


“Você ainda não terminou isso?”


“Não, Paul, estou esperando você me dizer como fazer as conexões elétricas, lembra?”


Ele não lembrava. E ele nunca lembrou. A atitude dele era a de quem já viveu demais para se importar com essas coisas mundanas. Tive que aprender sozinho a fazer as conexões, com um ferro de solda numa mão e um vídeo de YouTube na outra.


Recortando os buracos para os captadores da guitarra.

Gautier e seu dance master's fiddle.

Não vou negar, meus amigos, foram tempos de vacas magras. Nunca tive tantas crises de burn out consecutivas, exausto por passar 6 dias por semana construindo instrumentos e ainda tocando na rua no tempo que me sobrava, para poder completar a renda. Aos domingos, eu era um saco de carne e ossos irritadiço largado sobre uma cama, sem energia para pedir comida pelo celular. Mas se a situação financeira estava ruim, eu nunca me senti tão realizado no meu dia-a-dia. A esta altura, já adquirira uma boa prática e autonomia na luthieria, e comecei a construir mais coisas também, a consertar instrumentos que me traziam sem precisar incomodar o Paul com novecentas perguntas. Pelo contrário – em dado momento, recebemos dois estudantes universitários franceses que vieram para Galway especialmente para aprender luthieria naquela oficina, e eu os ajudei como pude com instruções e discursos motivacionais. Soléne, uma jovem que cursava o primeiro ano de engenharia, ia passar um mês conosco e depois seguir para outro trabalho em outra cidade – mas desistiu deste último e resolveu passar seus dois meses inteiros conosco, e saiu com um belíssimo ukulele de sua fabricação. Gautier, também aspirante a engenheiro, construiu um dance master’s fiddle – um violino magrinho e retangular que era algo portátil, mais fácil e rápido de se construir, com um pouco menos de graves no som, mas igualmente belo e presente se bem construído. Paul nos contou que, em seus dias áureos, suas inovações com instrumentos ficavam tão populares que em pouco tempo vários outros luthiers na Europa estavam copiando seus trabalhos e tomando o crédito para si – até o dia em que ele resolveu espalhar o boato de que ele tinha inventado o dance master’s fiddle e que era a nova geração de violinos aperfeiçoados. Segundo ele, em pouco tempo muitos luthiers europeus saíram gabando-se de que o violino simplificado era algum tipo de última maravilha.


Enfim, o fundo do hurdy gurdy pronto. "Agora começa a parte difícil", disse Paul ao contemplar o meu trabalho.

Então eu ignorava, como podia, as pressões e estresses financeiros e profissionais, conformado em estar passando os meus dias da melhor forma como conseguia, orientando aqueles jovens estudantes, ouvindo as histórias do Paul e construindo o meu hurdy gurdy – meu grande projeto que mudaria completamente a minha situação para melhor. Quem não iria querer contratar um tocador de hurdy gurdy para shows? Que tipo de dinheiro de busking eu não tiraria uma vez que aquela besta estivesse em minhas mãos?


“Só mais umas semanas” – dizia Paul, “você vai ser o único hurdy gurdist do condado de Galway, e um dos únicos da Irlanda. Só conheço mais um.”


MUITAS semanas depois: o teclado pronto.

Um dia, me entra na oficina um Cormac Cooke de aparência especialmente bizarra. Com a barba por fazer e os olhos vidrados, o tom de voz levemente descontrolado e movimentos meio bruscos, ele me perguntou, pela centésima vez, se a sua guitarra estava pronta. Em resposta, eu apontei-lhe o armário de vidro onde guardávamos os instrumentos finalizados, decorado agora com uma belíssima guitarra feita de sequóia, uma madeira leve e avermelhada com padrões lindíssimos de textura. Com braço de cerejeira e escala em rosewood, ela tinha um formato inspirado na Les Paul, mas a configuração de uma Telecaster. No headstock, uma cruz (vagamente) celta em madrepérola, pedido especial que Cormac me fez.





“Meu bebê!” – ele exclamou, tomando a guitarra em mãos e… bem… cheirando-a. “Este é o meu bebê! Agora senhores, se me derem licença, eu e esta guitarra vamos fazer amor.”


Com essa surreal sequência de palavras, ele deu meia volta e levou a guitarra embora. Eu, Paul e Gautier nos entreolhamos incrédulos, buscando um no olhar do outro a confirmação de que esta cena de fato acabara de ocorrer. Aliviado, fui ao banheiro dar cabo de outra pendência que estava na minha lista de tarefas do dia. Quando voltei, encontrei Cormac de volta na oficina, brandindo a guitarra e falando muito rápido.


“Está tudo certo com a guitarra?” – perguntei-lhe.

“Não. O Paul vai te dizer. Amanhã ao meio dia estou de volta para buscá-la.” – e foi embora novamente.


“Paul, o que há de errado com a guitarra?” – perguntei.


“Não sei, ele falou tudo muito rápido, não entendi uma palavra. Ele não quis repetir e foi embora.”


“Gautier, você entendeu o que o Cormac falou?” – apelei para os jovens ouvidos atentos do universitário.


“Não, eu só peguei a palavra “curvatura”. Não sei que curvatura ele quis dizer e o que há de errado com ela. Acho que ele falou algo da altura das cordas também.”


Paul tomou a guitarra e examinou-a.


“De fato, as cordas estão altas. Mas nada absurdo também, eu costumo entregar assim para o cliente poder ter a opção de abaixar ou tocar como quiser.”


“Bom, então vamos abaixar essas cordas e fazer uma checagem geral em tudo para ter certeza que nada mais passou batido.” – sugeri.


Nada mais havia passado batido. A guitarra estava impecável. Impecável, ela retornou ao armário de vidro.


Tampo de nogueira, teclado de mogno e bordo com tampa feita da tábua de bordo mais bonita que já vi na vida. Na foto ela tem pinceladas de água que sugerem a cor que terá quando envernizada.

Cabeça do hurdy gurdy, feita em lacewood, cavocada arqueologicamente para dar espaço às pregas.

Semanas passaram-se, e continuei trabalhando no meu hurdy gurdy sempre que tinha um momentinho livre. Todas as noites, eu deitava-me na cama do novo quarto que estava alugando, fechava os olhos, e via, nítido como vejo agora esta tela de computador, o meu hurdy gurdy. Toda noite eu planejava detalhadamente os próximos passos dessa construção, a fim de chegar no dia seguinte com todas as decisões tomadas. Quando caía no sono, a imagem do instrumento não ia embora, e eu continuava a trabalhar nele, a planejar e ensaiar cada novo passo. No dia seguinte, Paul me fazia perguntas como, “você já sabe que madeira vai usar para a cabeça do instrumento?” – ao que eu respondia, “não, mas amanhã saberei.” – e então eu tornava a me deitar de noite e me imaginava na oficina, analisando todas as madeiras, colocando-as contra o fundo do meu instrumento e com o teclado por cima, avaliando a funcionalidade, o som e a estética de contrastes, texturas e cores que eu buscava criar. E no dia seguinte, eu sempre tinha a resposta pronta. Era o que me mantinha são: após mudar de país e começar uma vida nova, após o término da banda que foi o projeto mais querido e importante que já realizei, eu andava com dificuldades de saciar-me a mim mesmo com uma resposta para a pergunta “quem sou eu?”


“Eu sou um simples aprendiz de luthier em Galway city” – eu repetia para mim mesmo todas as manhãs, quando abria as portas da oficina do Paul. Sinceramente, essa resposta me satisfazia tanto que eu não ligava para o resto das incertezas e inseguranças da vida. Eu estava próximo da música, estava trabalhando no meu plano genial de introduzir o hurdy gurdy na cena musical de Galway e logo eu seria capaz de me reerguer com um projeto musical solo.


Nunca fui muito fã das tradicionais cabeças de anjo no topo dos hurdy gurdys mais tradicionais. Fiz um kiwi com bico de ébano. As pregas são de viola, violino e hurdy gurdy, reaproveitadas.

Estava, pois, trabalhando no meu ornitorrinco musical, sozinho enquanto Paul tomava seu longo café da tarde em uma das suas lanchonetes favoritas da cidade, quando ouço um estrondo na porta e um homem me sobe as escadas, cambaleante.


“Cadê a minha guitarra?” – perguntou-me um Cormac Cooke com voz empapuçada e olhos esbugalhados.


Estranhando o comportamento absolutamente bizarro do sujeito, não respondi e apenas entreguei-lhe o instrumento.


“Está errado. Você não fez o que eu pedi.”


“O que está errado? Na última vez que o senhor esteve aqui, eu não estava presente e o Paul não entendeu o que você queria a mais. Ele tentou te ligar, mas o senhor não atendeu o telefone.”


“Está errado. Você que fez essa guitarra, né?”


“Fui eu sim.”

“Por que você fez errado?”


“Eu fiz de acordo com o projeto e orientação do Paul, e ele testou e aprovou o instrumento.”


“Você fez errado de propósito!”


Cooke fechou seus dedos trêmulos sobre a manivela da morsa que ficava na minha mesa e começou a apertá-la com força e fúria, como se estivesse tentando espremer alguma resposta da pobre ferramenta, o sangue subindo-lhe à cabeça injustificavelmente

.

“Você tem que aprender a trabalhar direito!”


“O senhor tem um problema pessoal comigo?” – perguntei.


“Tenho, sim! Você estragou o meu instrumento! Quero o meu dinheiro de volta!”


“O senhor pode falar com o Paul sobre reembolso. Eu não lido com as finanças da empresa, sou só assistente dele.”

Cooke largava a morsa e apanhava ferramentas aleatórias, brandia-as, chutava a quina da mesa, soltava grunhidos guturais.


“Você fique esperto!” – disse ele, agitando na minha direção um gesto de pistola que fazia com a mão, “na próxima vez que eu estiver aqui… na próxima vez…!”


Ô, meu caro Cormac, se tem uma coisa que você NÃO faz é apontar um gesto de pistola na direção de um brasileiro. Eu não sei o que isso significa para você, mas te garanto que isso significa muitas coisas para nós, e nenhuma delas é boa.


“Volto amanhã para buscar o meu dinheiro!”


Esta foi a última vez que vi Cormac Cooke. Ele desceu as escadas da oficina bufando, grunhindo, soltando berros e desferindo chutes em tudo o que ele encontrava de mais barulhento pelo caminho. Em choque, permaneci na mesma posição por alguns minutos, digerindo o ocorrido.


Juntei minhas coisas, vesti minha jaqueta, apaguei as luzes, saí da oficina e tranquei a porta atrás de mim. Mandei uma mensagem para o Paul, explicando o que havia se passado e dizendo que eu não viria trabalhar no dia seguinte. Era por isso que eu estava sacrificando a minha saúde financeira? Era pra isso que eu estava tendo crises de burn out quase toda semana? Valia à pena todas as semanas que eu ainda teria que aguentar nessa pressão e nessa exaustão, até terminar o meu hurdy gurdy?


No caminho de casa, entrei no prédio da Garda (a polícia irlandesa) e fui ter com um dos policiais de plantão. Expliquei-lhe todo o caso e perguntei:

“Escuta, eu sou novo nesse país, como procedo numa situação dessas?”


Impecavelmente solícito, o policial me ouviu com muita calma e atenção, acalmou-me um tanto os nervos, colocou no sistema as informações que eu tinha sobre o tal Cooke, e perguntou-me se eu queria que ele ligasse para o sujeito para “lhe dar um susto”. Disse que não, que eu não queria que nada disso se revertesse contra mim de maneira alguma, que eu só queria paz e distância desse tipo de estresse.


“Eu não saí do meu país e atravessei o Atlântico pra ser ameaçado no meu trabalho por um maluco fazendo gestinho de arma!” – disse ao Paul, quando finalmente retornei à oficina, dois dias depois.


“Ele é louco, sempre te falei que aquela guitarra era uma perda de tempo.”


“Ele falou que vai voltar para pedir o dinheiro de volta.”


“Ele voltou. Chutando tudo, gritando, como você descreveu. Mas eu falei pra ele que o instrumento estava perfeito, que se ele não quisesse levar que não levasse, mas que eu não teria como devolver o dinheiro porque não havia nada de errado. E também porque ele me pagou semanalmente durante meses: esse dinheiro não existe mais.”

“E ele fez o quê?”

“Nada. Deixou a guitarra e foi embora, gritando e chutando, dizendo que ia voltar para pegar o dinheiro dele. E nunca mais voltou. Ele parece ter algum problema com você, não parava de falar de você.”


“E se ele voltar?”

Paul levantou-se com a mesma calma de sempre, andou até uma certa pilha de tampos de violões e, de baixo da pilha, puxou uma longa e cintilante katana. O sorriso maroto em seu rosto me sugeriu que ele estava sendo brincalhão. Quis acreditar na minha intuição, sem fazer perguntas demais.


“Paul, sinto muito se eu causei algum problema para o seu negócio. Eu dei o melhor de mim, mas acho que a guitarra não ficou boa o suficiente, e eu temo ter te criado algum prejuízo.”


“A guitarra está perfeita. Eu não teria feito melhor. Mas ninguém vai comprá-la… ninguém compra guitarra de luthier hoje em dia. Ninguém encomenda guitarra feita à mão. Esse cara é um louco.”


“Bom, sinto muito se isso afetou o seu negócio de qualquer maneira.”


Paul olhou-me por um tempo e falou:


“O meu negócio acabou há muitos anos. Eu não estou preocupado com isso. Minha única preocupação é continuar fazendo o que eu gosto e ensinar quem quer aprender.” – dizendo isso, tirou da carteira o pagamento por aquele dia e pelo anterior, que eu não viera trabalhar. Segundo ele, não era justo eu ficar sem o meu dinheiro por culpa daquele crápula.


Mas algo havia se rompido dentro de mim. Por algumas semanas ainda, eu insisti em pegar novos projetos na oficina, e insisti no meu hurdy gurdy. Mas, quando deitava para dormir, eu não planejava mais nada – não sonhava mais com ele, apenas tentava manter acesa a chama deste plano ao qual eu havia me apegado e me agarrado tão desesperadamente. Era inegável que o volume morto das minhas reservas de energia e esperança estavam chegando ao fim, e a única coisa que me mantinha naquela missão era pensar, “se eu não for um simples aprendiz de luthier, se eu não tiver o meu hurdy gurdy, quem sou eu?” Não mais por sonho, então, mas por medo, eu seguia construindo instrumentos e quebrando a cabeça com peças cada vez mais complexas do meu instrumento.


Tampo pronto e fundo pré-envernizado com uma resina natural que dá cor e resistência para as leves costelas de sequóia.

Um dia, como de costume, dei bom dia ao Paul perguntando-lhe como estava.


“Estou sem dinheiro. Não sei se consigo te pagar essa semana.”


Uma semana sem receber era exatamente um quarto do meu aluguel que não seria pago.


“Paul, se você achar que não pode mais me contratar, não se preocupe, só me avise com antecedência para eu poder me programar e achar outro trabalho.”


“Não, não precisa. Eu te pago a semana inteira na sexta.”


“Você tem certeza?”


Ele hesitou por um instante.


“Pega outro trabalho, mas só essa semana. Semana que vem eu vou ter recebido a minha pensão, e posso te pagar com ela.”

“Paul, eu não tenho como pegar outro trabalho só por uma semana. Também não é pra você me pagar com a sua pensão, e sim com o dinheiro da empresa. Faz assim, essa semana eu faço busking todos os dias e você não precisa se preocupar comigo. Eu volto semana que vem e a gente vê o que faz.”


Eu não fiz busking aquela semana, pois estava chovendo. Sim, na Irlanda chove quase todos os dias, e por vezes chove o dia todo. Em vez disso, eu saí pela cidade entregando currículos molhados, que nem naquele dia em que eu conheci o Paul, quase um ano atrás. Do alto do meu eterno pavor de trabalhos que requerem cadeiras e telas de computador, escolhi muito bem onde eu vendia o meu peixe: lojas de instrumentos musicais… agências de turismo… pubs… lojas de trilha e aventura…


A minha crise existencial foi enfim deflagrada quando, já de volta à oficina, recebi uma ligação da gerente de uma certa loja de roupas de trilha e aventura na principal rua de comércio de Galway. Eles precisavam urgentemente de um vendedor novo. Eu tinha experiência com vendas? Só de shows de música irlandesa psicodélica em São Paulo. Eu tinha alguma experiência com lojas de roupa? Nenhuma… mas, se eles me ensinassem, eu aprenderia. Decerto não teriam interesse em mim.


“Paul, infelizmente tenho que te dizer que não vou poder continuar trabalhando aqui. Sinto muito mesmo, nunca tive um trabalho que gostei tanto quanto esse, mas infelizmente estou precisando urgentemente começar a ganhar um salário mínimo.”


“Você aguentou bastante! Achei que ia sair bem antes.”


Quisera eu ou não, este era o momento de encerrar um ciclo e começar outro. Meu hurdy gurdy ficou inacabado, mas o apego que eu tinha à idéia dele simplesmente não justificava mais aquela situação. Um salário mínimo significava que eu poderia trabalhar 3 ou 4 dias na semana, em vez de 6, e teria mais tempo livre para investir na minha música de outras formas, e teria mais energia para isso.


“Estou frustrado e com raiva, e não sei o que fazer e nem como lidar com esses sentimentos!” – eu reclamava, semanalmente, para minha psicóloga.


“Você já tentou desligar e ligar de novo?” – não era exatamente essa a resposta que ela me dava, mas bem que poderia ter sido. Do alto da sua frieza freudiana, ela agia como um helpdesk despreparado que é incapaz de sugerir nada que eu já não tivesse ponderado ad nauseam. Quase que deliberadamente, ela me incitava a pensar que, com o dinheiro que eu gastava com terapia, eu poderia me aliviar de mais dias de trabalho por semana e ainda pagar uma academia para equilibrar a saúde mental. Quem sabe, até, eu poderia tentar algo novo para lidar com esses sentimentos todos: eu poderia fazer alguma arte marcial.


Ocorre que um dos mais talentosos hosts de session de Galway, que toca no pub sobre o qual eu agora morava, também trabalhava como sensei durante o dia.


“Greg, ouvi dizer que você dá aulas de karate!” – perguntei-lhe certa feita, depois de uma session.


“Eu não falo sobre essas coisas à noite.” – ele me respondeu com uma firmeza admirável para quem tinha acabado de ingerir seu sétimo pint da noite. “Venha me procurar durante o dia e a gente conversa sobre isso.”


Durante algumas semanas, então, eu fui aprender a socar, me defender, cair e me levantar. Tempo o suficiente para aprender a cair do jeito certo e levantar em seguida.


“A gente tem que desenvolver uma pele grossa para lidar com a vida” – eu lembrava do Paul me falando.


Eu tomei socos o suficiente para aprender a converter a dor em adrenalina e querer mais no dia seguinte.


Eu dei socos o suficiente para aprender que raiva é uma energia que, se usada e canalizada do jeito certo, pode ser mais do que suficiente para te manter em movimento apesar de todas as incertezas.


Eu pratiquei poses e movimentos o suficiente para adicionar mais uma dimensão de experiência à minha eterna pesquisa taoista de seguir o flow da vida sem me preocupar muito com a direção onde eu estou indo.


Socos. Muitos socos.

Decidi, enfim, que o que eu quero para o futuro não é nada que me faça sacrificar o presente – quero que o meu futuro seja qualquer decorrência natural do que quer que esteja fazendo sentido aqui e agora. Tragicamente, não fazia mais sentido seguir como luthier. E, eventualmente, também não fazia mais sentido continuar indo nas aulas de karate. Eu já estava com muitas coisas novas na minha vida, que precisavam precisavam de atenção, e insistir em mais uma só dispersaria as minhas energias. Então eu me desapeguei, também, do karate, para que eu pudesse focar nesse próximo golpe que eu não tinha escolha a não ser desferir: eu estava contratado para ser vendedor daquela loja.


Nem, porém, a luthieria, nem a terapia, nem o karate, nem a esteira da academia haviam dado conta de me responder a pergunta que agora martelava minha consciência mais do que nunca:


Quem sou eu?




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