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Como Começar Uma Session: Um Guia Básico e Objetivo

O QUE É UMA IRISH SESSION?


Em linhas gerais uma Irish session é uma roda de músicos que se reúnem para tocar música tradicional irlandesa. Como se fosse uma roda de choro, uma roda de pagode, uma jam de jazz – mas cada um desses estilos musicais é um “idioma” específico que os músicos vão lá para conversar, e o trad irlandês é seu próprio idioma.


É, então, um tipo de “jogo”. E, como em todo jogo, existem procederes recomendados que facilitam o proveito de todos.




O QUE UMA SESSION NÃO É?

Uma session não é um show.

Uma session não é um concurso do The Voice.

Uma session não é uma competição de velocidade e virtuosismo.

Uma session não é um ensaio da sua banda.

Uma session não é um open bar.



O QUE PODE E O QUE NÃO PODE NUMA SESSION?

Pode tocar junto.

Não pode tocar fora do ritmo ou do tom.

Pode perguntar e tirar dúvidas com os músicos.

Não pode tocar “qualquer coisa” e chamar de improviso.

Pode pagar uma rodada de cervejas para os músicos.

Não pode pedir para eles tocarem “Country Roads” e ficar enfezado se eles não tocarem.

Pode não tocar quando você quiser.

Pode puxar tunes em ritmo mais lento.

Não pode tocar mais alto ou mais rápido do que todo mundo para chamar atenção.

Pode pedir para o bar desligar a música ambiente.

Não pode tocar desafinado.

Pode pedir os instrumentos das pessoas para testar.

Pode não deixar ninguém pegar o seu instrumento para testar.

Não pode tocar duas harmonias diferentes ao mesmo tempo.

Pode seguir a harmonia de quem começou primeiro.

Não pode tocar duas levadas rítmicas diferentes ao mesmo tempo.

Pode seguir o ritmo de quem começou primeiro.

Não pode sequestrar um set que está rolando, puxando outra tune no meio.

Pode propor o seu set quando a oportunidade surgir.

Pode puxar tunes ou canções que só você toca.

Não pode só puxar tunes ou canções que só você toca.



COMO COMEÇAR UMA SESSION: UMA RECEITA DE BOLO


Você vai precisar dos seguintes artifícios:

  1. Um espaço.

  2. Host.

  3. Instrumentos

  4. Tunes.

  5. Divulgação.


1. UM ESPAÇO


Há de ser de acesso público. Na Irlanda, é tradição organizar sessions em pubs – uma palavra que é abreviação de “public house”. É um lugar onde qualquer um pode entrar, sentar-se, pedir o que quiser beber (ou não) e, por que não, reunir-se com os amigos para tocar música. Como no Brasil o conceito de pub nem sempre é exatamente esse – e como não é em todos os lugares que encontramos pubs – me parece sensato presumir que prevalece a importância do acesso público. Dentro dessa lógica, não me pareceria exatamente simpático fazer uma session em um pub que cobre entrada ou consumação mínima do público, por exemplo - e menos ainda dos músicos. Além de pubs, opções legais (algumas das quais eu mesmo já experienciei) são botecos de esquina, tipo onde se fazem rodas de choro - parques públicos - centros culturais…

Vale lembrar que session não é show. Sim, na Irlanda muitas vezes os hosts recebem algum tipo de bonificação, mas não vá com a mentalidade de que você estará trabalhando, e é por isso merecedor de um grande cachê. Mais importante do que ser um trabalho é ser uma ocasião em que pessoas se reúnem para tocar tunes e cultivar o interesse pelo trad. Essa bonificação, no Brasil, costuma ser bastante rara pois a maioria dos donos de pubs e bares ainda não entendem bem a lógica da session e têm alguma dificuldade em ver vantagem naquela empreitada - às vezes é até necessário lembrar o gerente de desligar a música ambiente e de não esperar da session um "repertório", ou "pedidos da platéia" ou mesmo um tocar contínuo e ininterrupto (alguns pubs acham isso tão incompreensível que teimam em ligar a música ambiente cada vez que os músicos acabam um set). De qualquer forma, é justo tentar negociar alguma coisa, que seja uma cerveja por conta da casa ou uma porção de fritas, pelo hosteamento. O que nos leva à função desse (s) host (s). E aliás, já teve pub de São Paulo que saiu até na Folha por causa do sucesso indelével das suas sessions.


2. HOST


As tradicionais sessions do Deep Bar 611, em São Paulo, eram hosteadas pos músicos da banda Oran, vistos ao fundo: César Benzoni no bandolim, Mila Maia na flauta e Danny Littwin no violão.

Verdade seja dita, não é que uma session não pode acontecer sem host. Muito pelo contrário, aliás: qualquer grupo de duas ou mais pessoas pode se juntar para tocar umas tunes. Mas cabe, aqui, explicar o papel do host porque isso pode tornar as coisas mais simples tanto no que diz respeito à interação com os responsáveis pelo estabelecimento, quanto à fluidez da session em si. Tá certo que a session não é um show e que aqueles músicos não são uma banda, mas muitas vezes convém que pelo menos um ou dois deles tenham a capacidade de sustentar o ritmo e a melodia. Quem já tocou em session sabe que nem sempre todo mundo sabe todas as tunes, e muitas vezes, mesmo quando sabemos, não conseguimos sustentar ela ao vivo por muito tempo. Tropeços e erros são normais, quero dizer. Alguma dificuldade e discordância no ritmo também pode ocorrer. Os hosts são as pessoas que, tendo alguma bagagem do trad, conseguem segurar uma linha melódica e/ou rítmica para tornar mais confortável para todos que toquem juntos sem medo de ser feliz. Como a música irlandesa é muito baseada na melodia, eu diria que é recomendável que pelo menos um dos hosts seja um melodista (flauta, tin whistle, fiddle, bandolim, banjo, etc). Essa pessoa vai puxar sets de tunes, e apesar de não ser a única a fazê-lo, ela vai se encarregar de não deixar a peteca cair. Tendo um ou dois hosts que mantenham as tunes indo e vindo, a gente não precisa se preocupar tanto com quantas pessoas vão aparecer para tocar junto, pois o som já está garantido – quem vier, só acrescenta!

Ao lado de um melodista, pode ser bacana ter um host harmonista: o violão, por exemplo, além de acompanhar harmonicamente as tunes (e um host mais experiente pode inclusive criar uma hamonia simples para acompanhar tunes que ele não necessariamente conheça), também mantém um pulso e uma levada firme para que todos sigam juntos. O bodhrán pode fazer o mesmo papel de manter o ritmo, aliás.


Agora, e se você não sabe assim tanto sobre o trad, só toca algumas tunes e ainda não tem tanta fluência nos ritmos de jig, reel, etc, mas quer começar uma session na sua cidade? Bom, nada te impede! Como disse o Kevin Shortall em determinada ocasião, quem começa grande é elefante. Eu digo parabéns pela iniciativa: só junte alguns amigos que queiram tocar tunes e pronto, você tem uma session! Claro, você sempre pode ler o Pint Diário e aprender cada vez mais sobre o trad.



3. INSTRUMENTOS


Atualmente, trabalho como fazedor de instrumentos para Irish music, na oficina do consagrado luthier Paul Doyle, em Galway. A foto é minha mesmo: @leothekiwi.

Com ou sem host, acho seguro afirmar que o mais importante da session sejam os músicos. Bem mais importante do que o público, inclusive – lembrando que session não é show, ela é feita acima de tudo pelos músicos e para os músicos “baterem uma bolinha” entre si. Claro que o público é bem-vindo para apreciar, bater os pés (dentro do ritmo, por favor), aplaudir se quiser e tudo o mais.


A você que é instrumentista, vale dar aquela lembrada da importância de se ouvir o que está acontecendo na session antes de sair tocando junto. Preste atenção nos ritmos e em como eles estão sendo tocados nessa ocasião específica. Preste atenção nas tunes. Às vezes temos instrumentistas muito talentosos e versados em outros estilos, como o jazz, que pecam por não ouvir e acabam tendo alguma dificuldade em se encaixar na session. Por exemplo, não basta saber que um jig é um ritmo em 6/8, ou que o reel é em 2/2, porque essa notação é sentida e tocada com levadas muito diferentes dependendo do gênero. Não é complexo e não requer anos de vivência musical, mas requer atenção e ouvido para entender o que está acontecendo. Você não precisa saber teoria musical e não precisa saber ler partituras (tradicionalmente, aliás, tunes são aprendidas de ouvido), mas precisa saber sentir e se deixar levar.


E que instrumentos podem se juntar? Bem, todos! É verdade que, na Irlanda, em algumas (não muitas) sessions mais tradicionais, existe um grau de puritanismo que torce um pouco o nariz para instrumentos menos ortodoxos (até o violão, por incrível que pareça), mas a verdade é que a essência do trad não está em “qual” instrumento está tocando e sim em “como” ele está tocando. Mais uma vez ressaltando o respeito pela música, leve o instrumento que você quiser, desde que ele seja afinável em A=440 (nada de terraplanismos musicais, por favor) e não se projete acima de todo mundo – baterias, por exemplo, além de terem uma certa dificuldade com os ritmos do trad, costumam ser altas demais. Sinto muito quem toca gaita de foles escocesa: ela tem uma afinação muito própria e é alta demais.


Se você não sabe bem como proceder para se juntar aos músicos, recomendo ler sobre o "approach Jane Goodall", que me foi ensinado por um host de sessions neozelandesas, e que funcionou espetacularmente bem quando me mudei para Galway, na Irlanda.



4. TUNES



Tunes são os temas musicais que serão tocados na session. Geralmente, ocorre que cada session acaba tendo o seu “repertório mais ou menos próprio” – o que não significa que as tunes são combinadas de antemão e que sempre sejam as mesmas tocadas nas mesmas sessions. Mas, considerando o vasto universo de todas as tunes do mundo, acaba que, fatalmente, uma combinação de pessoas razoavelmente recorrente resulta em um espectro mais ou menos semelhante. Isso é bacana nas sessions: cada uma acaba adquirindo uma personalidade própria dessa forma.


As tunes são organizadas em sets, que são sequências de tunes repetidas entre 3 e 4 vezes (apesar de isso não ser uma regra). Vale à pena você chegar na session não só com as tunes pré-praticadas como também ter alguns sets montados na sua cabeça – isso vale para sessions iniciantes e avançadas, inclusive. Se alguém te convidar a puxar um set, ou mesmo se você quiser se aventurar, evite ficar decidindo na hora, no meio da tune, qual vai ser a próxima, a menos que você já tenha bastante prática com esse tipo de transição. De certa maneira, o jogo aí está em você pensar em combinações de tunes interessantes, que combinam ou que contrastam. Por exemplo, você pode começar o set com um jig em sol maior, depois passar para outro em ré maior, e finalizar com um terceiro em lá maior – mantém-se, aí, a unidade do ritmo de jig (apesar de que isso também não é obrigatório), e a progressão dos tons cria um efeito bem entusiasmante. Aliás: quem puxar um set geralmente é quem conduz e quem conclui, de maneira geral. E quando a pessoa for trocar de tune, ela vai avisar logo antes com um olhar ou falando “hup!”


Um set básico de três tunes sequenciais, que gravei com o Harmundi: 2x Kalyana jig (D), 2x Farewell To Whalley Range slip jig (F#m) e 2x Fleur De Mandragore reel (A). Note o contraste criado pela passagem das tunes, em que mudam tom e ritmo. Esse era um set que eu costumava puxar frequentemente nas sessions e acabou incorporado pela banda.


Se você porventura não sabe ainda por onde começar para montar o seu repertório, montamos aqui uma listinha de tunes que são razoavelmente fáceis (as mais fáceis marcadas em negrito) e bastante populares entre os músicos do trad. Para sua conveniência, cada um dos títulos é um link para página da respectiva tune no TheSession.org, onde você pode encontrar áudios e partituras. Todas elas podem ser tocadas em uma tin whistle em D.


Banish Misfortune (jig - D mixolídio)

Banshee (reel - G)

Blarney Pilgrim (jig - G)

Boys Of Malin (reel - A)

The Butterfly (slip jig - Em)

Cooley's (reel Em)

Drowsy Maggie (reel Em)

Maid Of Mt. Cisco (reel A dórico)

Earl's Chair (reel - Bm)

Farewell to Whalley Range (slip jig - F#m)

Gravelwalk (reel - A dórico)

Inisheer (valsa - G)

John Ryan's (polka - D)

Kesh (jig - G)

Kid On The Mountain (slip jig - Em)

King Of The Fairies (hornpipe - E dórico)

Morrison's (jig - E dórico)

Musical Priest (reel - Bm)

Si Beag Si Mor (valsa - D)

Silver Spear (reel - D)

Swallowtail (jig - E dórico)



5. DIVULGAÇÃO


Enfim, quando a sua session estiver marcada, nos intervalos do seu estudo e prática das tunes, lembre-se de que ninguém tem bola de cristal! Avise as pessoas, chame os amigos, poste nas redes sociais e, claro, avise O Pint Diário. Nosso intuito é de fomentar o interesse pela música tradicional irlandesa, então temos o maior prazer em compartilhar e anunciar não só shows de Irish pelo Brasil como também as sessions que surgirem.





AMPLIFICAR OU NÃO AMPLIFICAR – EIS A QUESTÃO

Finalmente, acho que vale à pena dar uma atenção para este clássico dilema.


Para começo de conversa, sessions na Irlanda muito dificilmente são amplificadas (se é que alguma seja). Nunca vi ninguém por aqui preocupado em levar cabos, amplificadores, microfones e mesas de som para sessions. Por outro lado, no Brasil as coisas são um pouco diferentes, e às vezes a amplificação pode ser, fatalmente, necessária.


Veja bem: existe uma diferença muito fundamental na forma como o povo irlandês e o brasileiro se comportam com relação a uma roda de música no bar. Digamos que o brasileiro, por não ter essa tradição tão próxima em sua cultura cotidiana, tende mais a “competir” com a música do que a “ouvir” a música, no que diz respeito à sua escolha de volume da voz. Na Irlanda nota-se que, por mais que muitas pessoas conversem alto também, isso não é tido como tão normal assim, e muitas vezes os músicos demonstram incômodo quando o público está escandaloso demais. Uma vez, durante uma session particularmente cheia no Cobblestone pub, em Dublin, vi um músico levantar-se da mesa e dirigir-se a um grupo de turistas americanos que falavam alto demais, perguntando “estamos atrapalhando a conversa de vocês?” Junto a isso, nota-se por aqui que mesmo quem está conversando animadamente não pensa na session como meramente uma música ambiente: aquilo é uma manifestação cultural importantíssima, tão digna daquele espaço quanto cada cliente pagante do bar. Fica claro que um ouvido está sempre na conversa, e outro na música – e, por vezes, basta que um dos músicos dê algumas batidinhas no seu copo ou fale “shhhh” para que o bar inteiro fique calado quase que instantaneamente. Nesses momentos, geralmente tem-se uma performance solo de alguém cantando ou de algum instrumento compartilhando uma tune mais própria. Às vezes tem-se um músico viajante que gostaria de compartilhar uma tune da sua terra (às vezes somos até nós aqui na Irlanda, tocando um choro ocasional), ou cantar uma história que lhe seja cara.


Enfim, digo isso para que tenhamos em mente de onde vem essa tradição. Somado a tudo isso, o espaço dos pubs é particularmente favorável à difusão acústica da música instrumental ao vivo. Isso, assim como a questão do volume do público, também não se pode dizer sobre as sessions quando acontecem no Brasil – onde as pessoas têm a tendência de falar mais alto, não prestar tanta atenção nos músicos e onde os bares são mais abertos e espaçosos. Ideal mesmo, penso eu, é simplificar as coisas e não levar nada além do seu instrumento e do seu dinheiro de pinga para uma session – mas, porém, entretanto, contudo, não obstante, todavia, já estive em sessions no Brasil em que era tamanha a dificuldade que os músicos tinham de se ouvir que chegou-se num ponto em que cada extremidade da mesa da session estava tocando um set de tunes diferente, sem saber que não era o que a outra extremidade estava tocando. Mesmo que a situação não chegue nesse nível de absurdo, pode ser muito estressante tentar seguir uma tune sem ouvir direito o andamento que o violão ou o bodhrán estão dando – pode ser muito frustrante tentar seguir uma harmonia se você não está ouvindo ela, ou acompanhar uma tune ou uma canção sem ouvi-la. Como sempre, o importante é priorizar a música.


Uma das nossas playlists especialmente desenvolvida a partir dos sons e artistas mais essenciais da música tradicional irlandesa. Abra direto no Spotify, porque esta plataforma corta a maior parte da playlist.



CRIE A HYPE


Foi com o intuito de colocar lenha nessa fogueira do Irish no Brasil que, em 2017, eu realizei um documentário entrevistando músicos de São Paulo e Rio de Janeiro, falando sobre e mostrando esse maravilhoso mundo das sessions que cresce cada vez mais. Ora, me parece uma boa forma de finalizar este artigo, dando um gostinho dessa hype maravilhosa para a qual eu e tantas pessoas dedicamos nossas vidas. Escrevi sobre ele, aliás, nesse artigo aqui.




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