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Crônicas de Session: O Curioso Caso Do Rapaz Das Duas Whistles

Atualizado: 21 de abr. de 2023

O submundo das Irish sessions é uma fonte de anedotas das mais cômicas às mais bizarras, das mais absurdas às mais preocupantes. Já ouvi histórias de batedores de colher que se infiltravam em sessions para ganhar cerveja grátis e promover um descompasso generalizado; já ouvi de encontros fortuitos com músicos lendários vestidos à paisana; já ouvi de tunes tão rápidas que até os dançarinos passaram mal; já ouvi de violões que tocaram até todas as suas cordas arrebentarem; já ouvi de violonistas expulsos por não tocarem um "instrumento tradicional"; já ouvi sobre celebridades musicais que pisaram no pé de quem não deviam; sobre sessions que viraram a noite e aos músicos foi servido café da manhã; até sobre casais que se formaram na session. Todas essas histórias carregam, nas entrelinhas do tragicômico, alguma reflexão sobre como evitar causar constrangimentos musicais, e, no fim das contas, uma amigável orientação sobre como tirar o melhor proveito possível das sessions. Mas a história que lhes vou contar hoje talvez seja a mais curiosa, a mais inacreditável e, por que não, didática que presenciei desde que comecei a tocar música irlandesa.


As imagens deste artigo são meramente ilustrativas.

Foi numa noite de quarta feira, nas consagradas terras de Barra Funda, no condado de Sumpaulo. A música estava especialmente enérgica, e a tradicional mesa dos músicos do Deep Bar 611 havia até estendido-se salão adentro, para acomodar todos os músicos que apareciam para partilhar deste momento fabuloso. Eis que alguns deles nem sempre sentavam-se imediatamente à mesa, receosos talvez, ou então observando o velho "Jane Goodall approach", que já se provou tão eficaz na aproximação de jovens instrumentistas da epítome musical do trad irlandês. O caso que quero lhes contar, pois, envolveu bem um desses intrépidos desbravadores, que empoleirou-se em uma mesa bastante privilegiada com relação à dos músicos: afastada apenas alguns metros e elevada por um degrau do pub, que a conferia visão panorâmica da session. Um brilho nos olhos deste viajante equiparava-se apenas ao cintilar de uma tin whistle que se insinuava em suas mãos. Por vezes ele erguia-se da mesa e projetava o corpo em direção à session como se tomando impulso para tomar parte da tocata, mas então tornava a sentar, os olhos não obstante irredutivelmente arregalados.



Uma Irish session é uma reunião de músicos, tipicamente ao redor de uma mesa de bar, que tocam temas da música tradicional irlandesa.

Pois aconteceu que em determinado set de tunes, um que era especialmente animado, veja bem você: eu absorto na minha flauta fui subtraído desse momento de esplêndida vaziez mental quando um ruído incompreensível subitamente se fez perceber, infiltrando-se por entre a tune que tocávamos. Se eu tivesse que descrever, diria que era como um Trinado da Eternidade, ou um longo solo de ornamentos produzido por dedos presumivelmente trêmulos em um instrumento de sopro notadamente agudo – dedos, esses, que escolhiam uma forma estranha de lidar com o nervosismo, pois ao invés de respirar fundo para situar-se na melodia, ou mesmo insistir em um tocar rápido e meio capenga, eles pareciam acelerar exponencialmente e render-se a uma total e completa entropia de notas musicais. Entropia é um conceito científico que refere-se à tendência ao caos – quando falamos em entropia dos gases, por exemplo, estamos descrevendo a tendência natural que as moléculas têm de espalharem-se homogeneamente por um ambiente até ocupá-lo por inteiro, motivo pelo qual os restaurantes e aviões de hoje não têm mais área de fumantes. Talvez eu pudesse dizer que o ruído em questão era o equivalente sonoro de um cigarro aceso no meio de uma convenção de aroma terapeutas. Não era de forma alguma ordenado como uma melodia, nem mesmo considerando-se as mais longínquas e distantes tradições musicais que a humanidade já teve a criatividade de conceber. Mas também não era bem como o tocar de uma criança pequena, que testa aleatoriamente as possibilidades de um instrumento que lhe é confiado, produzindo apitos ensurdecedores porém razoavelmente contínuos – não, esses ruídos eram produzidos por dedos ágeis que apressavam-se em interpretar o princípio quântico da incerteza de posição de uma partícula subatômica em termos de notas musicais produzidas em algum tipo de flauta. O que significa, em outras palavras, que no instante em que parecia ser possível identificar algo da exatidão das notas que eram tocadas, elas embaralhavam-se com tamanha rapidez que efetivamente não se podia distinguir simultaneamente a velocidade e a posição de cada nota individual que era tocada.


Nosso espanto foi grande.

Veja você como a mente deste que vos escreve atordoou-se subitamente com esse evento inesperado, pois isso que descrevo passou-se em meus pensamentos antes mesmo que eu pudesse levantar os olhos e buscar a fonte daquela anomalia sônica. Mas quando finalmente o fiz, notei primeiramente que algo muito similar parecia estar passando na cabeça de todos ali presentes. E então vimos que aquela interpelação curiosa provinha de ninguém menos do que aquele whistler empolgado que mencionei acima. Nesse momento ele achava-se de pé, avidamente enviando suas contribuições melódicas através do salão do pub em direção a nós – como se estivesse aplaudindo, efetivamente, exceto que em vez de bater as palmas de suas mãos ele agitava seus dedos sobre aquela tin whistle e soprava portentosamente o apito que vem colado em uma das extremidades daquele instrumento.


Imagens meramente ilustrativas.

Com esse inusitado adendo ao set que tocávamos, este foi sumariamente interrompido, pois aos músicos faltou-lhes vocabulário musical para acomodar aquela interjeição tão singular. Entreolhávamo-nos como se buscando uns nos outros um esboço de reação que pudesse ser mimetizado, grandes mimetizadores de comportamento que são os seres humanos, mas todos pareciam igualmente, democraticamente, solidariamente, embasbacados e sem palavras. Talvez percebendo essa dificuldade dos músicos, e talvez concluindo que eles provavelmente não tiveram a oportunidade de apreciar a sua música com a devida clareza, o whistler misterioso finalmente desceu de seu pedestal e sentou-se junto à roda, sorridente e orgulhoso de si mesmo. Apesar de confiantes de que aquele momento de virtuosidade onírica não se repetiria com tanta presteza, iniciamos um próximo set – mas os olhos deste flautista mal fecharam-se sobre a tune presente e já tornaram a abrir-se mais uma vez, incrédulos com mais um agudíssimo pacote de notas embaralhadas que prontamente precipitaram-se daquela tin whistle.


Não sabíamos como reagir.

Não interrompemos o set, dessa vez, da mesma forma como não interrompemos nossas atividades cotidianas quando somos interpelados por um aspirante de pastor que brada citações bíblicas na rua ou no transporte público, empunhando uma edição puída do Bom Livro. Prosseguimos com as tunes, cada vez mais confusos e incrédulos com a situação que se desenrolava. Verdade seja dita, meus amigos, nem mesmo os artigos d’O Pint Diário teriam sido o suficiente para nos informar, naquele momento, sobre como reagir àquela pessoa que agitava freneticamente os dedos sobre a sua whistle, e soprava e soprava como um lobo tentando derrubar a porta dos três porquinhos.


Devo dizer que imperava, pelo menos nessa session em particular, um espírito de profundo respeito e receptividade aos principiantes que talvez não partilhassem do privilégio de entender os procederes de uma Irish session assim como nós os compreendíamos. Por isso era particularmente capciosa a questão de como abordar essa questão, que, depois de dois sets, já configurava-se um problema a ser encarado. Claramente, aquele whistler acreditava, muito assertivamente, que estava contribuindo com a musicalidade presente. E, de fato, quando finalmente algum músico de especial sensibilidade tentou incentivar-lhe a prestar um pouco mais de atenção ao que se tocava, a fim de que pudesse adequar-se com mais facilidade, o whistler respondeu que “sim, é uma Irish session, por isso estou improvisando”. O problema, meus amigos, revelava-se de uma natureza ainda mais delicada do que antecipáramos.


Confrontado por uma resposta tão assertiva, o músico que a provocou tornou a assumir o papel que todos nós interpretávamos: o da forçosa abstração, quero dizer. Demorou o tempo de mais uma tune para que outro músico se inclinasse na direção do intrépido improvisador e lhe sugerisse com muito tato que naquela session estávamos tocando temas irlandeses, e que talvez conviesse ouvir um pouco para que o acompanhamento tomasse formas mais adequadas à situação. Nesse momento o whistler parou e pôs-se a ouvir e a pensar – e não sei por quanto tempo fez isso, pois as melodias que transcorreram desde então tiveram um valor de eternidade cósmica para todos nós, aliviados com a recém-conquistada consonância de instrumentos.

Imagens meramente ilustrativas.

Mas passado esse breve momento de alívio, a session encheu-se de mais uma aguda oferta de notas sortidas. Uma não, corrijo-me: duas! Pois ao levantarmos novamente os olhos na direção do provável responsável, revelou-se que ele tinha investido um pouco mais de dedicação à sua arte e agora tinha duas whistles na boca, e tocava-as simultaneamente. Uma delas era no tom de ré – a outra, digo-lhes com toda sinceridade, era no tom de dó. Imagine que, para quem achou que nada poderia ser mais dissonante naquela noite, um intervalo de tons desse gênero só veio para coroar a atmosfera dadaísta daquela session. Imagine só uma whistle em ré e outra em dó, simultaneamente cuspindo intervalos aleatórios em uma velocidade que o próprio Brian Finnegan invejaria, fossem eles ordenados de alguma forma – qualquer forma, eu lhes digo, qualquer! Pois fosse um improviso jazzístico, como já vi em algumas sessions, poderíamos bem ter utilizado da oratória e do bom senso para rapidamente demonstrar o porquê da presente inadequação. Mas sinto que o nível de absurso que lhes relato fugia ao alcance da razão musical – era mais comparável aos argumentos de um terraplanista que emprega uma régua elevada ao horizonte para demonstrar suas ilusões. Perdoem-se, perco-me em um jargão cheio de dedos e termos comedidos ao relatar esse acontecimento, pois falta-me repertório para sequer compreender o que ocorria – que dirá tomar providências a respeito.


Pensei com meus botões, e ocorre-me que muitos daqueles músicos filosofaram o mesmo, que se o host daquela session, mestre Danny Littwin, estivesse presente, a situação teria sido resolvida de maneira mais objetiva – pois ele era particularmente passional a respeito do ritmo e afinação daquela session, duas características que pareciam perfeitamente alienígenas ao pobre whistler que insistia em intervir com suas duas whistles de tons diferentes.


Finalmente, o que vi a seguir encheu-me de um combinado emocional que até hoje não soube processar propriamente. Cá entre nós, admito que um dos motivos para escrever esta crônica seja realmente o de repercorrer esses eventos a fim de dar-lhes um mínimo cabimento no contexto da experiência humana. Pois deu-se que em dado momento as whistles finalmente cessaram e a mesa da session pesou com um belo bocado de gás carbônico exalado por todos os músicos aliviados. A princípio não levantei os olhos, pois aproveitei o momento para saborear aquela tune que tocávamos, tão uníssona, tão límpida, tão afinada. Mas quando bisbilhotei o estado das coisas, vi que o nosso querido aventureiro levantava-se da mesa, endireitava-se em seu casaco e marchava resignado para fora do pub, sem despedir-se e arrastando consigo uma tenebrosa nuvem negra que pairava sobre sua cabeça, de forma que meus dedos até gelaram e enrijeceram e eu precisei pedir mais uma cerveja.


Senti-me compadecido do sujeito.


Ah, pois eu mesmo já estive na situação de quase abandonar o barco da música em tantas ocasiões – na verdade, já cheguei a abandonar esse barco com efeito, quando comecei a perceber olhares e comentários de desaprovação dos meus amigos jazzistas sobre as minhas risíveis tentativas de me juntar ao groove munido das minhas sonatas de Mozart. No piano, quero dizer. Pois foi depois de quase abandonar as teclas que juntei coragem para tornar a buscar a música, e foi dessa vez com a flauta, um instrumento menor, mais portátil e mais quieto, que eu poderia tocar sem sem ser percebido. E passaram-se alguns anos de tímidas iterações do tema do senhor dos anéis até eu ser convidado a tocar naquela session, no Deep Bar 611, onde finalmente coloquei o meu trauma musical à prova, e tive a sorte de encontrar parceiros artísticos um pouco mais tolerantes do que aqueles colegas de escola metidos a Herbie Hancock.




Eu sinceramente espero que aquele heróico whistler não tenha desistido da música como eu cheguei a desistir. Espero, em vez disso, que tenha chegado em casa e buscado informações sobre como melhor tirar proveito daquele encontro de músicos – é esse, afinal de contas, o intuito com que criamos O Pint Diário. Sinceramente, e dispensando o português polido que usei até aqui, pode-se muito bem escrever páginas e páginas de regras de session na tentativa de evitar uma situação como essa, mas dificilmente vamos chegar a uma forma de manter todo tipo de imprevisto sobre controle – e PRECISAMENTE porque um certo grau de descontrole faz-se necessário para que artistas possam expressar-se com a devida liberdade. É bem verdade que este incidente incitou uma série de especulações, entre nós que organizamos sessions, sobre como evitar problemas como esse. Alguns propuseram um calhamaço de páginas forradas de miudezas éticas, a serem divulgadas como “regras de session”, de forma que cada possível imprevisto fosse previsto e cada possível solução, prescrita. Ah, mas este aqui que vos escreve opôs-se a esse tipo de precaução: primeiro porque considero muito presunçoso querer prever todo tipo de inconveniente que poderá surgir pelo caminho (principalmente quando levamos em consideração o amplo universo de possibilidades da falta de noção humana) e tentar fazê-lo dessa forma só haveria de gerar ansiedade com relação a tudo aquilo que pode ser que não tenhamos pensado; segundo, porque isso acabaria mais espantando novos músicos, que, já tímidos por juntar-se à mesa da session, haveriam de ser recepcionados com toda uma constituição moral da música irlandesa. No fim, acabei elaborando uma breve lista de idéias para melhor aproveitar a session e respeitar o ambiente, que inclusive publiquei no fim deste artigo, mas que, admitidamente, não evitaria casos como o que contei hoje. E, para ser perfeitamente sincero com vocês, devo dizer que acho que este ocorrido foi muito feliz, e atestou lindamente a saúde e bom fluir daquela session. Por um lado, porque mostra o quão à vontade os músicos novos ficavam para tocar junto (e afinal de contas, eu não estaria aqui escrevendo esta crônica se não fosse por essa receptividade maravilhosa) – por outro, porque o problema foi tratado com muito tato e sensibilidade por quem estava lá tocando.


No fim, ninguém saiu ferido daquele incidente, que nunca mais se repetiu, e eu costumo dizer que, muitas vezes, a pior coisa que pode acontecer é termos uma boa história para contar depois. Na verdade, eu espero que aquele bravo desbravador das duas whistles também esteja contando essa história para seus comparsas, e que torne a voltar à session – dessa vez, porém, com algumas tunes bem ensaiadas.





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